Eu Sou a Essência Absoluta, Sou Arquinatural,
DIVINA SIMPLICIDADE – A Lei foi entregue à consciência de cada filho de Deus, e somente a Justiça Divina o julgará, em secreto, em tempo certo. O Verbo Modelo deixou o exemplo de tudo que deriva de Deus, seja Espírito ou Matéria, e a Deus um dia retornará, como Espírito e Verdade, e ninguém com Ele poderá jamais discutir, porque Seu advogado chama-se Justiça Divina. Capítulo I DO GÊNESE AO APOCALIPSE
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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020
NOS PLANOS DA MORTE - CAPA E POESIA DEUS
Eu Sou a Essência Absoluta, Sou Arquinatural,
NOS PLANOS DA MORTE - Capítulo I
Quando Catarina assomou à porta do quarto, onde seu marido de há muito sofria as torturas de mal incurável, sentiu passar por si alguma coisa estranha, uma espécie de gélida aragem. Como tudo estivesse fechado, sem possibilidade alguma de corrente de ar, Catarina procurou atinar com o que fosse aquilo, posto que o fenômeno fora intenso. Não encontrando explicação nas leis físicas, embrenhou a mente nas suposições espirituais, concluindo pela morte do esposo, clamando em brados alarmantes, acordando sua mãe e os dois filhinhos, que, assustados, vieram ter a ela.
Eu, seu filho mais velho, contando então dezesseis anos, acordado que estava e na cozinha, tomando a primeira refeição, a fim de rumar ao trabalho, acorri aos apelos, encontrando-a debruçada sobre meu pai, que de fato estava morto.
Seguiram-se os trâmites ordinários. Afinal, depois de todos os choques e entrechoques da opinião humana, as leis fundamentais cumprem os desígnios do Supremo Autor, endereçando as criaturas aos devidos fins. Diz velho refrão que Aquele que mais sabe mais calado fica. Realmente, enquanto as criaturas berram conceitos e preconceitos, empinando concepções e mais concepções, entre si as mais contraditórias e paradoxais, a Soberana Vontade executa Seus programas, através de leis básicas, sem ruído, sem alardes nem empavonamentos.
Meu pai sofria havia muitos anos; com isso gastamos tudo quanto fora possível, acumulando ainda algumas dívidas. A medicina havia dito, pela experiência de criteriosos esculápios, não haver recurso para o mal. Quanto ao credo por todos esposado, o Catolicismo, ele nada dissera, nem teria o que dizer, mudo e surdo, cego e materialista como era e como continua a ser. A única pessoa inquirida por minha mãe, e que lhe dissera estar tudo perdido, fora uma senhora benzedeira, muito acatada pelo povo, mas bastante atacada pelo pároco, que a tinha em conta de feiticeira.
Após a tempestade, a cruenta movimentação telúrica, tinha de vir a bonança; e a bonança veio, lenta e segura, até que terminamos por achar bem feita, a obra de Deus. Comparando as torturas e os inúteis esforços de antanho, com as pazes feitas junto às noites bem dormidas e os dias de paz e trabalho, concordamos com a Sabedoria Suprema. Foram quatro anos e meio de rotina pacífica, apenas curtindo saudades imensas, lanços de pranto, porque meu pai fora um homem bom, humanamente bom.
O exemplo que dera, durante a enfermidade, infundira profundo respeito; sua paciência parecia não ter limites! Quando alguém lhe exaltava a condição de sujeição ao mal, ele invariavelmente respondia:
– Tenho certeza de que a alma é imortal; portanto, além dos critérios humanos, acima dos recursos da medicina, pairam os desígnios de Deus. Se a morte for total, terei ganho a vantagem do homem decente, daquele que não escandaliza nem mesmo o sofrimento. E se a morte for aparente, continuando a viver o espírito, então receberei de Deus a recompensa de filho obediente. Além destas cogitações, é necessário lembrar que podem existir outros motivos para a vida e suas conseqüências, motivos que eu por ora desconheço, porém motivos que não serão ignorados por Deus. Por tudo isso, basta-me ser paciente, aguardando pelo que vier, quando e como Deus o queira.
A última vez que assim falou, foi a resposta dada ao farmacêutico, havendo este retorquido, cheio de dúvidas:
– É filosofia que serve... Mas, quem sabe?... Se ao menos as almas voltassem!...
Meu pai, que era assíduo leitor da Bíblia, respondeu-lhe:
– É disso que a Escritura está cheia, não?
O senhor Juvelino fez um esgar, balbuciando a meio tom:
– Ora a Bíblia!...
– Duvidas? – perguntou-lhe meu pai.
Ele encolheu os ombros, emendando:
– Entre dois erros, prefiro ficar com o menor: se a Bíblia é verdadeira, onde estão aqueles grandes avisos do Céu? Onde foram parar os anjos, os espíritos, tudo quanto ela diz que acontecia naqueles tempos? Prefiro que minta a Escritura, antes que eu o faça, compreende? Porque eu vivo do melhor modo, procurando fazer o bem, evitando todo e qualquer mal...
Meu pai atalhou-o:
– Jesus não falhará!... Jesus não falhará!...
O farmacêutico acrescentou, evasivo:
– Talvez... Talvez, Bonifácio... De tudo aquilo só resta a idolatria e a exploração humana... Se Jesus teve por missão fazer isso que anda por aí, que é a continuação de tudo aquilo que de formalismos, idolatrias e explorações já havia antes, creio que Ele foi apenas o mártir da inconsciência, da própria inconsciência. Ou teriam adulterado a Sua Doutrina, posteriormente? Se o fizeram, como se poderá saber e consertar a coisa? E mesmo que se venha a saber e a poder consertar, quantas gerações passaram e foram enganadas? Quem iria, depois de tudo isso, resgatar as legiões de ludibriados?
Lembro-me de que a conversa por aí terminou, ficando ambos a meditar, até o momento em que alguns parentes apareceram, tendo-se ido o farmacêutico, pensativo e triste, como quem deseja aquilo que não pode conseguir, a verdade reconfortante que se vislumbra ao longe e parece inatingível.
Durante o velório, à noite, o senhor Tristão, esse o sobrenome do farmacêutico, ao vir a mim para dar os pêsames, comentou:
– Quero crer na imortalidade da alma, faço até algum esforço para isso. A questão é que não posso, não consigo. Quando morre alguém, conhecido e amigo de tantos anos, como o seu pai, fico dias e dias a meditar, a cismar. Se é gente mais de perto, ou do sangue, adoeço, vou parar na cama.
Amargurado como estava, comentei-lhe, sentindo o peso da afirmativa:
– É certo, senhor Tristão... Fica-se com a alma congestionada, contrita a mais não poder. Hoje, por exemplo, parece-me ter a morte na garganta!...
Ele revidou, de pronto:
– Bem, não é a morte que me ataca e faz estrago; é a incerteza da religião, é a isenção de recursos práticos confirmativos da imortalidade que me faz mal. O ferreiro lida com o ferro e prova com fatos o que faz; a costureira não cobra por aquilo que não produz; eu, como farmacêutico, por exemplo, troco o remédio e os meus serviços pelo dinheiro do freguês. E assim por diante, normalmente a Humanidade trabalha e reparte os benefícios que vive a cambiar. Com a religião dá-se o contrário, nada se prova e quem procura saber dos resultados é herético!...
Em minha simplicidade, e ferido em cheio pelo querido defunto ali presente, achei por bem ser apenas conformista:
– É real. Todavia, senhor Tristão, Deus sabe o que faz, não é?
Homem simples, usando sempre de franqueza para todos os efeitos, retrucou:
– Pelo menos, Teodoro, Deus nada cobra nem dá opinião. Eu falo é dos que cobram e exigem respeitos exagerados, pelo que fazem de salamaleques a título de religião ou de coisa válida perante Deus! Sabe que um dia destes, perguntando ao pároco a respeito de provas a dar, a fim de justificar as cobranças que faz e os respeitos que exige, deu-me ele, como resposta, o conselho de jamais fazer semelhante pergunta a quem quer que seja?! Não acha você, menino, que é pedir muito pelo nada que prova?
Ainda julgando estar certo, apresentei a minha sugestão:
– Devemos ter fé... Se ainda me lembro, Jesus pediu para termos fé.
– Em quem, Teodoro? Em Deus, ou nos donos de religiões?
Expus o meu pensamento, com acanhamento evidente:
– Em Deus... Em Jesus... Eu penso que deve ser assim.
O farmacêutico abanou a cabeça, emitiu o seu sorriso entredentes, aventando:
– Logicamente, Teodoro, a chamada Criação testemunha um Emanador, um Princípio, um Deus, seja lá como for, Substância, Energia, Espírito, sei lá!... Também é certo que os livros dizem que Jesus fez grandes coisas, milagres, ou coisas que o valha. O que se lê dos Apóstolos, diz que também fizeram prodígios, que andaram curando, fazendo milagres, etc. No entanto, que fazem os tais de padres, esses homens que se apresentam empalhaçados, cheios de gestos fingidos, criando atitudes formais e obrigando a idolatrias, a fim de garantir as vantagens do bolso e do estômago, do orgulho e da vaidade? Será que o Deus de Verdade, que em tudo e para tudo se comprova à base de leis justas, de fatos concretos, em matéria de religião perdeu a noção de equilíbrio e de moralidade? Ou será que o erro humano pôs a perder a Excelsa Doutrina vivida por Jesus?
Não fora estar angustiado de corpo e de alma, teria perguntado, naquela época, ao senhor Tristão, que importância teriam aqueles problemas para a vida. Afinal, tudo quanto eu sabia dava para pensar deste modo: crentes ou descrentes vivem e morrem! Todavia, naquele transe, estava contrito, cheio de temores e obrigações, motivo por que apenas aduzi:
– É isso mesmo... Acho que o senhor tem razão.
Animado de estranha convicção disse, quase num ralho mal disfarçado:
– Pondere, menino, que a coisa é bem grave. Que tem visto e sabido até hoje, à custa de ir à igreja? Viu mais do que homens fantasiados, pedras e paus, gesso e barro, simulacros e rituais inventados por homens? É nisso que devia dar a Doutrina de Jesus, segundo como rezam as Escrituras?
– Mas eu não sei que coisas rezam as Escrituras, senhor Tristão!... Minha gente crê em Deus, em Jesus, nos Santos... Para crer não é preciso nada disso, a gente sente...
Contrariado com as minhas primeiras palavras, interrompeu-me:
– Não pode ser! Então, Teodoro, enquanto uns acreditam cegamente, outros podem explorar maliciosa e grosseiramente, chegando a trair a Lei? Foi esse o exemplo do Cristo? Demais, se o Cristo tivesse feito isso, ou se isso por que aí está fosse o que Cristo deixou, não teria feito Ele coisa ridícula, sacrificando a vida a bem de erros que já estavam degradando a inteligência e envergonhando as consciências desde milhares de anos?
Não tendo o que dizer, verdadeiramente acuado pela força de argumentos que eu não poderia refutar, pela falta de conhecimento de causa, monologuei a esmo:
– Bem... Bem, todos falam em Deus, no Bem, na Verdade...
Quando eu gaguejava o que rematar, emendou ele, sorrindo:
– Eu sei, eu sei; também os ladrões de cavalos falam em Deus!... Todos querem ter um Deus, nem que seja para fazê-Lo responsável de seus erros! E não faltam os que mentem e roubam, fraudam e impingem grossas estultices, já não digo em nome do Criador, mas francamente à custa do Criador. É necessário lembrar o seguinte: há muita diferença entre crer em Deus, ou fazer um comércio e obra de preservação da ignorância.
Deu-me uma palmadinha nas costas, enquanto fez breve silêncio, para em seguida indagar-me:
– Deus quer a ignorância e a idolatria? Deus teme a sabedoria do homem? É justo que em nome de Deus se imponham farândulas e se conservem exércitos de parasitas sociais?
Dei graças a Deus de haver-se avizinhado um mulato que, sorrindo afavelmente, acenava com a cabeça e mostrava uma fila de alvíssimos dentes. Eu estava no barranco, sem beco nem saída, pois nunca havia pensado em religião e, muito menos ainda, em comparações que pudessem e devessem ser feitas. Como quem passa fogo ao vizinho, sorri como pude ao novo interlocutor, continuando calado. O senhor Tristão, cumprimentando o mulato sorridente, perguntou-lhe:
– O senhor, que acha?
Com a voz bem timbrada, respondeu o simpático mulato:
– Eu sou protestante... O senhor tem razão, pois o Evangelho diz...
Num repente, meio nervoso, o senhor Tristão interrompeu-o, obtemperando:
– O Evangelho só não diz que Jesus passou pela vida falando muito e sem fazer ou provar coisa alguma! É outra forma de ser conformista com a cegueira, nada mais! Vocês pregam, falam, cantam belos hinos, etc.; mas nada fazem e nada sabem daquilo que Jesus sabia e fazia, ensinou e deixou no mundo!
Pretendendo ser lógico e paciente, o protestante revidou:
– O senhor tenha paciência, tenha calma...
O senhor Tristão, vivamente embalado, replicou-lhe:
– Paciência e calma eu tenho bastante, meu amigo; o que não tenho e não pretendo ter, lembrem-se, é tolices no cangote!
O mulato aparteou, convicto:
– Diz um provérbio chinês que aquele que perde a paciência é porque já perdeu a razão...
O farmacêutico refutou, enfático:
– Esse chinês, meu amigo, viveu no tempo em que os cachorros não sabiam para que serviam as lingüiças... Se ele fosse vivo hoje, e tivesse um pouco de senso crítico para aplicar na vida, certamente cortaria o pescoço antes de dizer tamanha asneira. Diga, isso sim, que a mentira religiosa cativa mais do que a pinga, vicia mais do que o jogo e brutaliza mais do que o analfabetismo!
O mulato virou as costas e foi andando, dizendo coisas que se não podiam ouvir. Eu, aproveitando a oportunidade, entrei para dentro de casa, alegando que me estavam chamando. E o senhor Tristão, por sim ou por não, ficou onde estava, fumando o seu cigarrinho de palha, fedorento como ele só. Estava, porém, satisfeito.
NOS PLANOS DA MORTE - Capítulo II
A vida, numa cidade pequena do interior, concorre para que se arraiguem e demorem os registros emotivos, pela falta de movimentação e distrações. O número de conhecidos e de amigos é avultado, obrigando a rememorar os fatos e as comoções, prolongando as amarguras.
Em face da morte, é claro, até os ateus pensam com respeito; se os crentes o fazem pela significação da responsabilidade, o ateu o faz pela perda de tudo que lhe tem valor, que é a vida consciente, fundamentada nos mancais do afeto e da razão. Todos, porém, encaram a morte com respeito, ainda que uns veiculem o respeito pelos prismas do temor, enquanto que outros o fazem pelas vielas dos sentimentos humanos, onde a simbiose razão e sentimento, forja um estado traumático de abandono e lassidão. Entre os que acreditam em Deus e na imortalidade prevalecem os sentimentos de continuidade, embora em tom místico e funéreo, muitas vezes supersticiosos e até macabro. Os que pretendem matar a vida com a transformação da matéria, quase sempre mais abrutalhados, embora também quase sempre mais humanos, o sentimento de negação os faz modificar mais depressa o estado de choque.
Assim foi que ouvimos conversas de variantes matizes concepcionais: uns afirmando que a morte põe cabo a tudo; outros dizendo que até o Juízo Final de nada adiantaria pensar; outros afirmando que as missas garantiriam melhor estado ao morto; outros repetindo que, a morte não existindo, cumpria cogitar do bem estar dos trespassados, assim como fosse possível, segundo leis e recursos conferidos por Deus.
A questão é que cada qual fala de seus conhecimentos recalcados, esquecendo o efeito das tradições alheias em benefício de suas tradições, muitas vezes de concepções que chegaram a admitir com tremendos esforços, depois de cruentas lutas íntimas de ordem consciencional. O que levaram tempos a adotar, pretendem que os outros o façam de pronto; o que curtiram dolorosamente, magoando convicções de longa tradição, desejam que os demais resolvam em cinco minutos.
Todos sabem dizer o que os outros devem fazer, até mesmo aqueles que nada fazem. Afirmam com toda a certeza outros tantos, sobre as verdades da morte, como nenhuma certeza conseguem ter de coisinhas da vida mundana. A vontade pura e simples de auxiliar, em casos tais, faz de muita gente séria apenas criaturas ridículas.
Todavia, o reduto familiar estava prevenido, sabendo ouvir, calar e decidir por si mesmo, sem alardes. Dizer algumas palavras de consolo e apoio a uma viúva com três filhos menores é bastante humanitário; mas pretender impor condições de crença e modos de agir é estupidez. Entretanto, foi isso o que nos fez manter a linha mais aconselhável. Uma única vez minha mãe respondeu a alguém, sobre a conveniência de guardar para si toda a sabedoria que armazenava a respeito das verdades de Deus. A piedosa mulher vinha e convidava para irmos ao culto de sua igreja, um dos ramos do protestantismo. Como fosse minha mãe dizendo que não, pois confiava em que Deus não devia gostar de bajulações e engodos, a tal senhora repetia que, por isso, as coisas para nós sempre iriam mal. Minha mãe fez-lhe ver que depois da morte de meu pai, morte que a todos cabe de direito, a única importunação vinha de suas insinuações não reclamadas. Foi o fim daquela amizade, porque a tal senhora era mais sectária do que evangélica.
Aos poucos, como sói acontecer normalmente, os trâmites da vida tomaram conta de todas as cogitações, tendo fim o período de conselhos salvadores. Um dia, ao jantar, perguntei a minha mãe:
– Ninguém mais fala sobre como se vai ao Céu pelo caminho mais curto?
Minha mãe respondeu-me:
– Agora é que eles todos acertaram... Deixar os outros em paz é bem o que Deus deve apreciar.
– Ainda bem! – interveio minha irmã Anita.
Ocorrendo-lhe lembrar o caso, minha mãe perguntou-lhe:
– Foi ontem benzer o sol na cabeça?
– Fui, sim senhora. Dona Alzira mandou-lhe muitas lembranças.
Lúcia, a irmãzinha mais nova, aludiu:
– Foi a melhor amiga... Ensinou o que fazer, sem dar conselhos não pedidos.
Como de hábito, incentivando o respeito pelo próximo e a gratidão pelas amizades, minha mãe observou:
– Sempre que a conduta de uma pessoa não atinge as alturas da impertinência, tudo o mais é boa vontade e merece respeito. Cada qual ofereceu o que tinha e pode, embora alguns com moderação e outros com excessivo ardor temperamental. A senhora Alzira sabe coisas... Por isso, fala menos e faz mais, não dá conselhos a quem não os pediu e não ensina certas verdades a quem julga não merecê-las. Na vida de relações, meus filhos, há que se pôr prudência em tudo; quanto ao que conhecemos sob o nome de religião, muito mais há do que julgam os homens existir. E como sobre tudo se pode falar ou não, segundo como se fale e a quem se fale, em matéria de religião tudo sobe de monta e responsabilidade.
Recordando as palavras do senhor Tristão, durante o velório de meu pai, ventilei:
– O farmacêutico é um tipo interessante, julgado religiosamente; de tudo fala em tese, procurando uma Verdade que deve existir ou ser, ficando sempre à margem das religiões. Discute sempre e nunca manda fazer isto ou aquilo. Sua Verdade é teórica, abstrata, existe no plano dos ideais irrealizáveis. Por isso, vive em luta íntima constante, esbravejando contra o mundo, brigando com todos e nada fazendo de prático. Todavia, é um homem bom, humanitário.
– Quem lhe falou assim? – inquiriu-me ela, sorrindo.
– Meu professor – respondi.
– Quem o fez abordar a questão? – tornou ela, inteligente.
– Eu...
– Por quê?
– Porque a conversa que tivemos, no dia da morte de papai, fez-me pensar e muito. Consultei o meu professor sob alguns pontos, depois das aulas, por noites a fio. Como é versado em Filosofia, andou a me relatar teorias e mais teorias, terminando por dizer que se Deus fosse como certos homens pensam, tudo poderia ser, menos Deus. Quanto ao farmacêutico, senhor Tristão, disse que tem idéias ocultistas, porém que lhe faltam melhores instruções.
Minha mãe referiu-se ao professor, com palavras amáveis:
– O professor Lago é amigo de muitos anos. Fomos colegas na Escola Mista durante alguns anos, antes de me casar, quando abandonei o magistério. É um homem honestíssimo, que a si mesmo promete retidão de conduta e não transige. Discute as filosofias, mas conserva a sua filosofia. Crê num Deus, num Princípio, procurando senti-Lo através da chamada Criação e compreendê-Lo através dos fenômenos da vida. Não conseguindo admitir outros caminhos que não sejam os da Justiça, do Bem, da Verdade, da Harmonia e do Amor sublimado, pauta a vida com retidão. Não acredita em petições formais, não se sujeita a rituais, achando que isso tudo é material profano, material que ludibria a uns em proveito dos interesses subalternos de outros. E justifica sua convicção com o recurso de fortíssima dialética, pois enquanto afirma que os mais devotos são aqueles mesmos que procedem na maioria das vezes com mais indecência, afirma também que Deus sempre demonstra agir através de leis e de fatos, como a chamada Criação o comprova.
Satisfeito de ouvi-la assim falar, e admirado por não havê-lo feito antes, indaguei:
– A senhora jamais abordou semelhantes fatos, nem disse antes uma palavra sequer sobre o professor Lago. Conhecendo-o tão bem, e sabendo algumas verdades interessantes, por que não conversou antes a tal respeito? Não sei se é por influência da morte de papai, ou se apenas pela conversa do senhor Tristão, mas a realidade é que me sinto voltado para os pensamentos mais avançados, para as coisas de caráter acentuadamente espirituais.
Tomando ar de quem medita em questões sérias, respondeu-me ela:
– Primeiro foi a doença de seu pai, enquanto você, meu filho, sendo o mais velho, ganhava os dezesseis anos. Depois, segundo o meu modo de pensar, queria vê-lo atingir a idade propícia a esses assuntos. Quero dizer, agora que o sei envolvido em pensamentos e questões tão úteis e interessantes, que não é tudo ficar com os saberes e as concepções do professor Lago; há mais, em Deus, para Seus filhos, do que apenas isso que agora lhe parece muito. Dê-me algum tempo e fá-lo-ei conhecer outras teorias e outras práticas. Enquanto for esperando, como é jovem e os jovens são facilmente maleáveis, tenha sempre em mente que além daquilo que ouvir, que os outros lhe disserem, embora lhe pareçam tais insinuações muito justas e até mesmo únicas verdades, lembre-se, meu filho, que todos somos filhos de Deus, que Deus nunca faz a ninguém favores nem desaforos e que as portas do conhecimento jamais serão por Ele fechadas a quem quer que seja. Mantenha a sua mente acima de insinuações, à margem de exigências sectárias, longe das estreitezas do mundo religioso formal. Nenhum conhecimento, neste mundo, é mais erradamente aplicado; porque em nome da religião se fazem todas as asneiras, se dizem todos os impropérios; quem compra ofertas de homens não é melhor do que aqueles que vendem. E, de modo geral, perante Deus todos somos iguais em natureza e finalidade. Saiba ouvir, assimilar o quê for bom e nunca perder a sua personalidade. O verdadeiro saber faz criaturas livres e não escravas. Os verdadeiros mestres passam adiante os ensinos, jamais querem coagir e dominar.
Ela estacou, em certo momento, para meditar um pouco; enquanto ela raciocinava, minha irmã Anita adiantou-se, meio revoltada:
– O padre disse, domingo, que Dona Alzira é feiticeira. Eu acho que o padre não sabe que ela benze os doentes... Se ele tivesse alguma doença, e precisasse, não diria essas coisas de Dona Alzira.
Entretido naquilo que minha mãe iria dizer, nada lhe respondi. Minha mãe também não o fez, concentrada que estava no assunto que lhe tomava toda a atenção. E quando falou, foi para dizer:
– Quando você completar dezoito anos, permitirei que leia alguns livros que herdei de meu pai, seu avô. Como já lhe disse, meu pai morreu no mar, pois fora marinheiro da esquadra francesa. Os livros que deixou, dedicados a mim, sua filha única, foram as luzes que me guiaram na vida. São livros cheios de sabedoria, extratos de grandes livros ocultistas; resumiu, também, outros tantos ensinamentos, a fim de facilitar a compreensão. Como eu pretendo que vocês todos aprendam o idioma francês, pretendo também que venham a conhecer verdades melhores, verdades que livram, não isso que por aí anda, em nome de Deus e do Cristo, coisas idólatras que servem de meio de vida a muitos parasitas, a homens que exigem a ignorância de seus semelhantes, para se garantirem vida farta e cômoda.
Minha irmãzinha volveu a perguntar:
– Dona Alzira é feiticeira?
Minha mãe sorriu, abanou a cabeça em sinal de desaprovação, dizendo:
– Filhinha, você ainda não pode compreender certas coisas... Todavia, lembre-se, Jesus foi acusado de feiticeiro e crucificado. No Talmud, livro de leis dos rabinos israelitas, está escrito que Jesus, na véspera da Páscoa dos Judeus, foi crucificado por ser feiticeiro. Assim O julgaram os padres daquele tempo, da mesma sorte que assim fazem os padres de hoje, quando alguém sabe e faz aquilo que excede aos formalismos e às negociatas idólatras. Todavia, nunca diga o que lhe estou a dizer, pois ainda é cedo para fazer isso. Dia virá, porém, em que a mentira ruirá por terra, retomando a Verdade o seu devido lugar.
Volvendo aos livros prometidos por minha mãe, falei-lhe:
– Desta hora em diante contarei os dias, até que chegue a hora de poder manusear os livros que o vovô lhe deixou. Enquanto isso, quero ir ouvindo as falas dos senhores Tristão e Lago, procurando reter o que for bom, sem me deixar influir em demasia. Serei um bom policial de minhas idéias e de meus impulsos emotivos.
– Antes de mais nada – interpôs minha mãe – procurem vocês todos aprender bem o francês. Tenho um documento manuscrito, deixado pelo vosso avô, que é a cópia de um grande livro, em rolo, que fora encontrado através de escavações feitas nos locais onde viveram por muitos séculos os Essênios, isto é, a Escola de Profetas hebreus. Vocês irão ver, quando puderem ler, que essa Escola foi a mais importante de todas as chamadas Escolas Antigas, fundadas por grandes missionários, como os Budas, Rama, Crisna, os Zoroastros, Hermes Trimegistro, Orfeu, Apolônio de Tiana, etc.
– É formidável, mamãe! – bradei, entusiasmadíssimo.
– E que diria você, meu filho, se soubesse o que fez Jesus, e que posteriormente os homens corromperam? Já pensou na Igreja Viva de Jesus Cristo, sem cleros exploradores, sem fantasias temporais, sem idolatrias; enfim, toda ela fundamentada na Moral da Lei e nas luminuras da Revelação? Pois vocês irão ler e saber, meus filhos, que importa conhecer a Verdade e repelir a mentira, essa mentira que vige no mundo religioso, apenas para gáudio de seus donos, homens gananciosos que tudo querem para si, propriedades e domínios de toda sorte, homens que ficam nas portas, como disse Jesus, que não entram e proíbem a entrada dos que poderiam fazê-lo...
Lúcia, a caçula, perguntou-lhe, admirada:
– Entrar onde, mamãe?!
Houve risos, é claro, por causa daquela pergunta simples e intempestiva, partida de quem partiu. Após o momento de hilaridade, minha mãe prosseguiu:
– Muitos grandes missionários vieram ao mundo, antes de Jesus Cristo, para revelar da Verdade o possível; Jesus veio para completar a medida, fundando Sua Doutrina sobre a Moral da Lei e as consolações da Revelação informadora. Foi como escancarar as portas da Verdade, ou rasgar o véu dos tempos! Deixou, pois, a Doutrina Excelsa, Doutrina que afirmou ser do Pai, não Sua, por ser Ele apenas o seu transmissor. A Doutrina conduz à Verdade, ao conhecimento; aqueles que ficam nas portas, segundo Jesus, são aqueles que têm interesses clericais, sectários, idólatras e supersticiosos. Para eles a ignorância é sabedoria, a mentira é verdade, e a Verdade maiúscula é como se fosse coisa de satanás.
Anita interrompeu-a:
– Mas o papai não dizia que satanás não existe, que é figura empregada como significando o símbolo do Mal?
Minha mãe repetiu as palavras de que meu pai sempre fazia uso:
– Quem havia de ser satanás, minha filha, sem ser o Mal? Em nome do que fizeram aquilo com Jesus? Quem o fez? Lembre-se, filhinha, que ninguém pode ser a favor e contra a Verdade a um só tempo. E o mundo ainda está cheio de homens, e homens que pretendem ser os donos da consciência alheia, que nada mais fazem do que praticar tremendos erros. Tudo quanto é contrário ao interesse de seus grupos, no assanhamento de seus institutos, onde os fingimentos e os simulacros tudo fazem e tudo valem, porque nada esclarecem e tudo sacrificam, impondo a ignorância; tudo, repito, que é pela Verdade, para tais institutos e tais homens é diabólico, é de satanás. Assim fizeram com Jesus e assim farão com todos aqueles a quem a Verdade interessar de fato, porque os homens que transformam a fé em meio de vida terminam transformando a Verdade em coisa insuportável! Dão para inventar rituais, dogmas, simulacros, vestes fingidas; e arrogarem-se toda a autoridade possível. Aberram tanto, de tal modo se pretendem senhores do pensar e do sentir alheios, que perdem as estribeiras quando são contestados.
Apesar de ter ouvido algumas verdades da boca do professor Lago, referentes à Doutrina de Jesus, e os erros que posteriormente surgiram no mundo, através de Roma, quando no quarto século deram fim ao verdadeiro Cristianismo, implantando a idolatria no lugar da Revelação, eu estava admirado das palavras da minha mãe, de seus conhecimentos e convicções.
– Admira-me – disse-lhe – que sabendo o que sabe, tenha calado até hoje; de minha parte, se vier a ter bons conhecimentos, afianço que os farei conhecidos o quanto puder. Faz poucos dias que vivo a pensar nas coisas de Deus e do espírito; no entanto, pelo que tenho ouvido e sentido, o mundo sofre a falta de melhores conhecimentos, parece que deseja saber e não tem como adquirir o conhecimento. Creio que as pessoas de boa vontade e conhecimentos deviam se organizar, para enfrentar a ignorância que domina sobre os filhos de Deus.
– É perigoso, por ora, falar sobre algumas verdades. – respondeu ela – Mas virá o dia, estamos informados, em que as questões espirituais não serão focalizadas pelo prisma das clerezias nem dos simulacros que às clerezias interessam. Problemas do espírito devem ser tratados espiritualmente, sem fingimentos e sem engodos, de espírito para espírito e com a simplicidade e severidade com que se devem acionar as realidades do cérebro e do coração. Quando a mente e a consciência das centelhas estiverem funcionando livres de idolatrias, ou superiormente, a Humanidade caminhará depressa no rumo dos melhores dias.
– Estão informados por quem? – consultei-a.
Esquiva, ela respondeu:
– Por quem pode e deve informar... Todavia, hoje não quero falar sobre isso. Digo-lhe, apenas, que outros tempos virão, em que para conhecer e amar a Verdade não serão impostos aos filhos de Deus homens empalhaçados e idolatrias. As realidades do espírito serão cultivadas através das virtudes espirituais, isentando-se as criaturas de todo e qualquer formalismo pagão. Lembre-se, meu filho, que ninguém chega a ser grande perante Deus, sem ser espiritualmente sábio e amoroso; e que essas potências derivam do espírito, não de engodos e idolatrias. Se Jesus mandou amar a Deus com toda a força do coração e de toda a inteligência, por ser Deus Espírito e Verdade, assim é que se deve adorar. Os simulacros e os demais engodos, que os homens buscam fora de si, provam simplesmente a falta de virtudes íntimas, a distância em que se acham da Verdade.
Eu estava sob o império da curiosidade, da mais espicaçante curiosidade. Não me seria possível deixar de perguntar-lhe:
– Como a senhora pratica a sua religião, pensando assim? Tenho-a visto, na igreja, entrar e sair sem ajoelhar, sem persignar, sem usar água benta.
Contrafeita, esclareceu:
– É difícil vencer neste mundo, rompendo de uma vez com o ramerrão circulante e por quase todos reverenciado; fosse possível, por estar numa cidade grande, tomaríamos outras resoluções. Aqui, nesta cidade, pequena como é, e com o seu pai doente de mal incurável quase que desde o nosso casamento, não seria possível enveredar para outros caminhos, rompendo com a corrupção e a mentira. Demais, consideramos que vocês haverão de crescer, quando então faríamos coisa diferente, mudando para lugar mais propício. Já que me perguntou, saiba que sou contra tudo quanto é idolatria, tudo quanto é simulacro, seja de vestes, de rituais, de enganosas atitudes. Todavia, lembre-se, mantém a sua boca em silêncio, até que chegue a hora, até que se possa amar a Deus em Espírito e Verdade, tendo por base Moral a Lei e por instrumento informativo a Revelação.
– Revelação!... Em que sentido devemos compreender a Revelação? É a Revelação trazida por Jesus, ou é outra que terá de vir?
Minha mãe levantou-se, dizendo:
– Por
hoje basta, meu filho. E não me pergunte mais sobre estas questões,
antes de saber bem o idioma francês, compreendeu? E quanto à Igreja
de Jesus, é Viva por causa da Revelação e não morta por via da
idolatria. Mais tarde terá de saber outras coisas, aí então
falaremos mais. Agora, trabalhe durante o dia e estude à noite, para
que amanhã seja um bom filho de Deus e não um corrupto, um homem
que cultiva a decência e não alguém que se entrega à inverdade.
NOS PLANOS DA MORTE - Capítulo III
CAPÍTULO III
A custa de muitos esforços fomos rumando a vida para melhores dias. As irmãs foram crescendo, eu me fiz homem, a nossa progenitora apresentara os seus primeiros cabelos brancos.
Daquela data, em que minha mãe dissera para não mais falar no assunto enquanto não soubesse bem o francês, de fato nada mais lhe perguntei. Todavia, três pessoas ficaram gravadas em minha retentiva: a senhora Alzira, o senhor Tristão e o professor Lago.
A senhora Alzira demonstrava, pelo semblante sereno e grave, saber coisas de que não tratava com qualquer pessoa; sua bondade emanava de nobres sentimentos, suas ações refletiam elevado grau de consciência espiritual. Não sendo letrada, a sua casa era visitada por gente merecedora de melhores créditos, mormente quando algumas desgraças lhes atingiam a vida. O pároco dizia que era feiticeira, mas a palavra do pároco produzia efeitos contrários, porque enquanto ele fazia salamaleques e mandava ajoelhar diante de imagens, e seguir rituais, coisas que de nada valiam nem coisa alguma podiam produzir, a senhora Alzira aconselhava e atacava os fatos em cheio, instruída por quem ela dizia que sabia onde tinha o nariz. Andei por longos dias a lhe vasculhar as redondezas, perguntando a seu respeito às pessoas que lhe pediam auxílio espiritual.
Algumas pessoas diziam que estavam procurando melhoras, que ainda lhe não conheciam os poderes; outras pessoas emprestavam-lhe grandes forças, diziam que tinha valores para auxiliar, mas que julgava os propósitos para prometer auxílio. O maior número confiava em seu caráter superior, pois sendo na juventude muito formosa, e tendo tido muitas ofertas de casamento, mantivera a sua liberdade individual, afirmando que sua vida era devida aos objetivos de Deus. Quando eu completei vinte anos, fui-lhe ao encalço, perguntando-lhe algumas coisas referentes ao meu destino em geral.
– Eu sabia – disse-me ela – que você viria até mim quando a hora chegasse. Agradeço a Deus por isto que vem de ocorrer. Mas, conforme o dito por sua mãe, é melhor que faça estudos melhores, antes de saber algumas verdades práticas. Sua vida é para ser bem empregada, como a de todos os filhos de Deus. Depois disso, é bom considerar, terá ainda o direito de relativa liberdade, para enveredar por rumos que bem quiser, em matéria espiritualista.
Adiantei:
– Quero seguir a trilha exemplificada por minha mãe...
Antes que eu terminasse, aparteou-me:
– O exemplo de sua mãe é louvável; mas a melhor conduta é você mesmo saber e decidir. Não fale já em nome de conceito algum, porque antes dos trinta anos a sua mentalidade não estará pronta. Lembre-se, Teodoro, daquilo que ora lhe digo, eu que tenho seguido seus passos dentro e fora da carne, observando sua conduta, apreciando seus esforços. Vá, meu rapaz, procurando sustentar bem alto o pálio da Pureza e da Sabedoria. Sem Moral elevada nada se consegue perante Deus, embora o mundo terreno possa vir ao nosso encontro, para nos ofertar todos os bens possíveis. Também o Conhecimento deve ser procurado, porque a ignorância é o único diabo que realmente existe. Cumpre amar a Deus com todas as forças do cérebro e do coração. Fora disso, Teodoro, os homens se fazem joguetes nas mãos das idolatrias e das explorações inventadas por criaturas sem pejo.
Eu estava encantado, porque sua voz parecia vir dos confins do Infinito. Sua fisionomia revelava tremenda segurança daquilo que dizia. Seus olhos grandes e bonitos, amendoados, falavam mais do que a sua boca. Ela se aquietou, em certa ocasião, para me oferecer a palavra. Eu calei, porque senti que ela tinha muito para dizer, enquanto eu tinha tudo para ouvir.
Dando-me a mão em sinal de despedida, adiantou:
– Estude o quanto puder, sem se deixar influir, pois importa que a sua futura conduta represente o melhor de suas convicções. O mundo prepara-se para novos tempos, quando a Doutrina de Jesus deverá ser reposta no lugar e em todas as partes da Terra. Vá, meu rapaz, e que Deus lhe ilumine a mente.
Fui, com a alma transbordante de alegria. Aquela mulher parecia alguém vindo das alturas celestiais. Sua casa não tinha imagens, suas maneiras eram limpas e severas; a impressão que causava era ótima, embora um tanto advertencial. Ela deixava na gente um sentimento de precaução, qualquer coisa que significava atenção nos mínimos detalhes da vida, como se fosse fiscalizar a conduta das pessoas que com ela procurassem entendimento.
O senhor Tristão fora por mim fartamente abordado. Eu nada lhe disse de minhas pretensões, nem de coisa alguma observada por minha mãe. Notei, entretanto, que ele procurava a Verdade, mas por todos os caminhos possíveis, em grosso ou em linhas gerais, sem se deter nos pormenores, nas nuances doutrinárias. Era de todo anti-clerical, como toda e qualquer pessoa vastamente lida em matéria de espiritualismo fundamental. Sabia que a função dos cleros, verdadeiramente, era truncar nas gentes a melhor formação religiosa, por ensinar e impor idolatrias, a fim de manter as instituições, a subsistência e todas as regalias sociais derivantes.
Nem a título de tolerância suportava a Igreja Católica, afirmando que a ela se deviam os erros religiosos em que se chafurdara o mundo ocidental. Salientava o fator Revelação como sendo o alicerce do Cristianismo do Cristo, mas entulhava o interlocutor com suas queixas, achando que nada era possível fazer, sendo, como era obrigado pelas circunstâncias da vida a morar numa pequena cidade, onde todos se conhecem e falam uns dos outros.
Eu queria acesso à sua biblioteca, mas nada consegui; ele sempre tinha algumas desculpas, ora achando que não desejava influir sobre a formação dos mais jovens, ora dizendo que tinha ciúme de seus livros, porque na maior parte lhe haviam sido ofertados por amigos, com dedicatórias.
Vivia, portanto, à sua maneira de ser, aviando receitas e esbravejando contra um mundo de coisas, sem fazer nada de sério e seguro. Era um temperamental, nada mais, com alguns esclarecimentos. Com pouco ficava, e não muito bem, porque não possuía o condão de se decidir. Para ele, o pároco era um gatuno dos corpos e das almas, porque tirava materialmente o que as gentes ganhavam com sacrifício, enquanto que espiritualmente impunha conceitos que constituíam transgressões da Lei de Deus. Em compensação, o pároco dizia dele coisas fortes, menos em questões de moral, que ele sabia viver decentemente, mas a respeito de religião, afirmando que fazia tresmalhar alguns do seu rebanho. O pároco preferia dizer do rebanho do Cristo, para realçar a sua autoridade; mas os elementos mais cultos, ouvindo o pároco falar, sabiam que as lãs do rebanho ficavam ali mesmo com ele, pois do pensamento do Cristo nem ele pároco nem paroquiano algum jamais tivera notícias confirmativas.
Quando alguém lhe dizia das arremetidas do pároco, clamando por Deus e pelo Cristo contra o farmacêutico, este argumentava que devia antes apelar ao diabo, se o diabo existisse, porque é o tutelar dos inimigos da Lei de Deus. E avançava em argumentos, pois entendia que a Humanidade estaria bem mal, se tomasse o exemplo do pároco, uma vez que vivia à custa de um comércio a que jamais tinha obrigação de prestar contas ao Senhorio, nem de dar satisfação dos resultados aos consumidores de suas maquinações. Assim, dizia, enquanto por aqui estiver, de Deus e do Cristo pretende ter a devida autorização, enquanto que a ninguém presta contas, nem do Alto nem cá de baixo, sobre estar sendo honesto ou desonesto.
De fato, assim pensavam muitos, mal andaria o pároco, se lhe fossem exigidas algumas prestações de contas, de maneira prática; não conseguiria provar a realidade do seu ministério nem a eficácia do seu trabalho. Poderia provar, quando muito, que ficava a dever contas a Deus e aos paroquianos, mas contas pelas quais responderia mais tarde, longe das vistas de todos, menos de Deus. Assim, afirmava o senhor Tristão, era o único comerciante que não pagava impostos, como era também o único que podia entregar ou não as respectivas mercadorias, perfeitas ou deterioradas, sem ter que dar satisfação de modo algum.
Nada me aproveitou o contato com o senhor Tristão, contato muitas vezes provocado, porque ele sempre argumentava e nunca chegava a concluir. Sua vida, no entretanto, estava acima de cogitações no plano moral; e fazia, de maneira elegante, a sua obra de solidariedade. Os pobres tinham nele um bom amigo e benfeitor. Para nós, por exemplo, fez aquilo que só Deus lhe poderá ao certo apreciar e recompensar.
O professor Lago era tido como filósofo; não lhe votava o pároco prevenção alguma. Ele, por sua vez, entrava nas igrejas todas, protestantes ou católicas, de todos fazendo bons amigos em humanidade. Suas teorias, quer sobre o chamado Criador, quer sobre a chamada Criação, ou sobre as leis e as virtudes, eram simplesmente monistas. Tudo intrínseco, tudo íntimo, sem distâncias de ordem local entre o Pai e os filhos, fossem espirituais ou materiais. Todavia, manifestava sempre a sua preferência a dois grandes vultos – Crisna e Hermes Trimegistro. Jesus lhe era acima de cogitações, porque dizia que Lhe haviam corrompido a Doutrina, deixando por todos os foros de ser o responsável por isso que a Humanidade pensa que é Cristianismo. Ao lhe perguntar diretamente o que pensava que fosse o Cristianismo do Cristo, respondeu-me que só sabia ter sido a Doutrina estabelecida sobre a Revelação, vindo posteriormente a ser desvirtuada, em Roma, a bem do Império.
Foi ele quem me atendeu, sem saber, a fim de que eu entrasse para o conhecimento de algumas verdades bíblicas sobre a Doutrina de Jesus. Deu-me uma Bíblia toda assinalada; tudo quanto dizia respeito a Jesus estava marcado em azul, desde os Profetas; e tudo quanto se referia ao derrame de Espírito ou Batismo de Espírito Santo, também. Além disso, fizera anotações à margem, chamando a atenção para os pontos correlatos, citando os textos que deviam ser lidos e confrontados, para efeito de análise e conclusão.
Devo a ele um grande serviço, pois creio que ninguém mais poderia ter feito aquilo, com tanta justeza e segurança, quando ainda faltavam dez anos para o século vinte inaugurar seus domínios no circuito das eras em trânsito. Quando aos vinte anos minha mãe permitiu-me entrar nos assuntos daqueles tais livros e manuscritos, eu estava saturado fortemente das verdades do Cristianismo, de sua base fundamental, constituída de Moral e de Revelação.
É certo que aprendi muitas lições interessantes, vindo a saber que Grandes Mestres da Verdade haviam já passado pelo mundo, quando Jesus veio trazer a graça da Revelação ou Batismo de Espírito, a fim de facilitar aos filhos de Deus em geral as extensões do consolo que é o intercâmbio entre os dois planos da vida. A realidade, entretanto, é que eu comecei a desejar ardentemente saber como seria possível entrar em contato com os espíritos, assim como o fizeram Jesus e os Apóstolos, e todos os cristãos, até o quarto século, como afirmava o professor Lago, fundamentado na Escritura e outros documentos.
Quando lhe pedi para ler algumas obras de sua biblioteca, ao invés de se alegrar com o meu propósito, ficou bastante triste, grave e concentrado, antes de falar. E quando falou, foi para dizer:
– Teodoro, este mundo anda aos trambolhos desde que existe, com os homens a corromper e a conspurcar as leis e os ensinos derivados de Deus. Receio que você, como tantos outros, venha a saber algumas verdades, para logo mais transformá-las em objeto de pouco caso, talvez de motejo. A meu ver, rapaz, creio que deve ir pensar um pouco, antes de procurar tais conhecimentos. É melhor ser um ignorante sincero que um conhecedor escandaloso.
Notando que suas palavras me feriram fundo, até às lágrimas, deu-me um abraço forte, prometendo:
– Teodoro, você é um jovem que promete; venha buscar os livros.
Naquele dia dei entrada aos mais vastos conhecimentos filosóficos, conhecimentos que, encimados pelas verdades evangélicas, deram-me a certeza de que somos de Deus parte e relação. E ao falar em Evangelho, peço que me entendam como de fato penso, em bases morais e revelacionistas, éticas e experimentais, aplicando o cérebro e o coração com o maior ardor possível, para concluir com justeza, acima de suposições supersticiosas, idólatras e conchavistas.
Creio, com toda a sinceridade que, para haver melhora no plano geral do Cristianismo, basta se faça uma rigorosa revisão nas bases conceptivas; que se deixem de lado os misticismos passivos, que em nada resultam, colocando acima de tudo o conhecimento das leis regentes e o reconhecimento de que em Deus não prevalecem as manobras que se fazem em nome da fé. Porque o sentimento passivo de uns é sempre campo de exploração para outros; e, assim, enquanto duas partes cometem faltas, a conseqüência geral é a imoralidade do ambiente humano.
Se tiver de falar no extrato, na súmula doutrinária, devo dizer que transformo as bases do Velho e do Novo Testamento em uma única chave; porque enquanto no Velho Testamento ressalta a Lei de Deus, que manda adorar a Deus em Verdade e Justiça, tendo como elemento intrínseco informativo a Revelação, também o Novo Testamento ordena amar a Deus com todas as forças do cérebro e do coração, tendo por encimação final o Batismo de Espírito, a Revelação para toda a carne.
Que há, pois, de mais ou de menos entre os dois, sem ser que antes havia Revelação para um pequeno grupo, enquanto depois passou a haver Revelação para toda a carne? Se tomarmos, como de fato devemos tomar a Jesus como tendo sido a Lei viva, não é certo que assim mesmo a base Moral é a mesma Lei? E tudo não fica, de novo, nas bases da Lei e da Revelação?
Considerando, também, que a corrupção surgida em Roma desvirtuou o Cristianismo, e que o Espiritismo lhe é a restauração predita pelo Cristo, não temos de novo as mesmas bases, a Moral da Lei e os informes da Revelação, formando o eixo a mover todo o mecanismo doutrinário?
E se formos por aí, seguindo a trilha justa, não iremos encontrar o espírito postado em frente ao dever único, que é se tornar moralizado segundo a Lei e sábio através da Revelação? A síntese não fica sendo Amor e Sabedoria?
Havendo, conseqüentemente, que fazer um simples exercício analítico, não iremos encontrar as clerezias, as vestes fingidas, os simulacros, os dogmas, os rituais, tudo isso que é exterior e formal, como entraves ao progresso das almas? Não é certo que, enquanto olham para fora, e fazem ginásticas idólatras, e sustentam legiões de homens e mulheres parasitas, esquecem os graves problemas de consciência? Em que coisas depositam fé? Em que aplicam a esperança? Ao que fica a caridade reduzida?
Já disse um grande pensador, de séculos atrás, que quando a idolatria toma conta do homem, o homem se esquece da fraternidade; nada mais justo, pois o vício da idolatria enceguece mais do que a miopia, embrutece mais do que a ignorância e degrada mais do que os vícios do álcool e do jogo. Porque enquanto alguns outros vícios ferem a criatura de fora para dentro, a idolatria aniquila-o de dentro para fora! Ou se adora em Espírito e Verdade, ou se faz obra de mentiroso, eis a Lei!
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A SAGRADA E ETERNA SÍNTESE
PRINCÍPIO OU DEUS – Essência Divina Onipresente, Onisciente e Onipotente, que tudo origina, sustenta e destina, e cujo destino é a Reintegração Total. O Espírito e a Matéria, os Mundos e as Humanidades, e as Leis Relativas, retornarão à Unidade Essencial, ou Espírito e Verdade. Se deixasse de Emanar, Manifestar ou Criar, nada haveria sem ser Ele, Princípio Onipresente. Como o Princípio é Integral, não crescendo nem diminuindo, tudo gira em torno de ser Manifestador e Manifestação, tudo Manifestando e tudo Reintegrando. Eis o Divino Monismo.
ESPÍRITO FILHO – As centelhas emanadas, não criadas, contêm TODAS AS VIRTUDES DIVINAS EM POTENCIAL, devendo desabrochá-las no seio dos Mundos, das encarnações e desencarnações, até retornarem ao Seio Divino, como Unas ou Espírito e Verdade. Ninguém será eternamente filho de Deus, tudo voltará a ser Deus em Deus. Esta sabedoria foi ensinada por Hermes, Crisna e Pitágoras. Jesus viveu o Personagem Inconfundível de VERBO EXEMPLAR, de tudo que deriva do UM ESSENCIAL e a Ele retorna como UNO TOTAL. O Túmulo Vazio é mais do que a Manjedoura. (Entendam bem).
CARRO DA ALMA OU PERISPÍRITO – Ele se forma para o espírito filho ter meios de agir no Cosmos, ou Matéria. Com a autodivinização do espírito, ao atingir a União Divina, ou Reintegração, finda a tarefa do perispírito. Lentíssima é a autodivinização, isto é, o desabrochamento das Latentes Virtudes Divinas. Tudo vai aumentando em Luz e Glória, até vir a ser Divindade Total, União Total, isto é, perdendo em RELATIVIDADE, para ganhar em DIVINDADE.
MATÉRIA OU COSMO – A Matéria é Essência Divina, Luz Divina, Energia, Éter, Substância, Gás, Vapor, Líquido, Sólido. Em qualquer nível de apresentação é ferramenta do espírito filho de Deus. (É muito infeliz quem não procura entender isso).