O
AMIGO
O
meu serviço aqui é, não poucas vezes, muito inferior ao que
desempenhava na vida de encarnado. Na minha vida de encarnado era
professor primário. E como tivesse, agora o sei, grave embalagem do
passado pesando sobre mim no sentido do ceticismo, e sendo certo que
as concepções antropomórficas sobre Deus não podiam ter em meus
raciocínios aceitação, o que fiz, por quase toda a vida, foi
ensinar um quase absoluto ateísmo. Afirmava que uma força regia o
universo; mas que a isso chamar Deus era coisa de simplórios.
Por
razão moral explicava que, em face de ser uma força, com caráter
geral para todos os efeitos, fria em todos os sentidos, de nada
poderiam valer os atos ditos ou tidos como religiosos, comprados ou
vendidos. Hoje, francamente, louvo-me de assim ter pensado. Nisso
estava certo. E com a consciência que venha de alcançar, sobre uma
Divina Essência, Poder Absoluto, que tudo engendra e rege de dentro
para fora, sinto em mim apenas a dor moral de ter falhado no modo de
interpretar essa Divina Essência, criando no ânimo dos pequenos,
disposição para negações prejudiciais. Não foi o que fiz no
momento; foi o que causei, como conseqüência, o que me prejudicou
muito.
Como
conseqüência para mim, ficou o ter-me encontrado, em pós a
desencarnação por acidente, em um lugar onde não havia suficiente
ar para respirar. Agora sei que nos planos astrais inferiores, tanto
se pode sofrer por ter demais como de menos, qualquer bem da vida.
Pode parecer estranho, mas o desequilíbrio é quem gera todo o mal.
E por aqui disso pode haver, por isto ou por aquilo, de um modo ou de
outro, causando dor espiritual, moral, mental, intelectual e material
a nosso modo. A nosso modo, sim, em vista de tudo ser questão de
relação entre o indivíduo e o ambiente, sua intensidade psíquica
e a densidade dos elementos cósmicos.
Nós
vivemos em pleno mundo material, para certos efeitos, bem assim,
como, para outros, em mundo astral acentuado. Tudo é relativo em
qualquer ponto do universo, dizem os mais sábios daqui. Por isso,
enfrentamos dificuldades e contamos com gratos acontecimentos e
sublimes possibilidades, no mesmo ambiente.
Faltava,
pois, ar para respirar, no plano por onde perambulei uns trinta e
poucos anos. Não que fosse triste de tudo. Não que faltasse ali
vida organizada. Não que deixasse de contar com alguns bons
recursos. O mal é que, havendo de tudo um pouco, havia pouco ar,
causando isso muito sofrimento aos cidadãos do local. Havia épocas,
como que periodicamente certas, em que o mal se agravava, em forma de
crises. O desespero roía, acabrunhava, tornava malucos a muitos.
Alguns corriam, fugiam, queriam esconder-se em bosques ralos. Outros,
notem bem e não pasmem, morriam... Sim, morriam, tendo de ser
enterrados. E agora sei que não morriam, pois deixavam, como
acontece na terra, um corpo mais denso em troca de outro mais leve.
Morrer
era um modo de findar a purgação moral em tal plano. Outros modos
existem, sendo que eu, por exemplo, tendo ido dormir uma noite, no
dia seguinte acordei em lugar bem estranho. Até hoje, ninguém me
disse o que comigo se passou, se morri por lá, se para cá fui
trazido por alguém delegado para tanto. Como tudo é possível,
porque de leis não há falta na Obra Divina, nem tenho interesse em
procurar saber isso.
Agora
estou, pois, num plano socorrista, como faxineiro. Tenho doze horas
de trabalho por dia. E não sou o único professor que está fazendo
isso. Gente de bem mais alto coturno está passando por coisa pior. E
por muito pior do que isto, vi gente muito mais importante do mundo
passar em tenebrosos lugares. Isso, porém, serve-me de consolo. Que
seria dos pequeninos do mundo, se os grandes de lá pudessem comprar
também a justiça daqui? Pelo menos, por estas bandas, ninguém
poderá discutir a condição de um rei ou de um pária, por vê-los,
ambos, em bem maus lençóis. Cada qual tem o seu, independente dos
títulos do mundo, das prerrogativas da sociedade terrícola.
Ninguém
é julgado por ter sido rico, pobre, ignorante ou sábio; mas é
julgado pelo modo como exerceu a sua vida, segundo cumpriu seus
deveres. A Justiça Suprema não age por despeito, como julgam os
beatismos tolos do mundo. É lá no plano da própria consciência,
lá onde o ser em si mesmo sabe estar a falta cometida. Onde pôs
luz, encontra-a. E onde pôs trevas, não deixará de encontrá-las.
O imperador como o lixeiro, tanto podem ser bons como ruins.
No
pavilhão onde trabalho, pois, fui procurado por um amigo, o Simão.
Vinha ele com ordem para me levar ao chefe dos serviços, com
urgência. Este Simão, é bom o diga, também veio de planos
intelectuais do mundo físico, também teve seu quinhão na falta de
ar, bem assim como distribuiu negação divinal a muitos irmãos da
terra. Hoje, também estranha que tenha negado o Espírito Divino,
sendo natural que mais do que Ele não há o que exista. A vida
regurgita de Vida por todos os poros, o que se vê manifesto,
testemunha o Supremo Imanifesto de todos os modos. Até onde
poderemos ser brutos, santo Deus?!...
– Vamos
imediatamente, Janeiro, que o chefe deseja vê-lo; – disse-me ele,
de um modo interessante, sorrindo e apreensivo...
– Que
há de novo? – indaguei, curioso, notando-lhe o sorriso leve e a
acentuada expectativa, enquanto largava a um canto vassoura, escovão
e panos.
– Isso
é o que quero saber! – resmungou o amigo, fazendo um gesto de mão
todo a seu modo.
E
acrescentou elucidativo:
– Você
sabe que o Plano Divino não é o de nos ter rastejantes; Deus quer
de nós coisa melhor. Quem sabe lá se isso que vem para você, no
curso dos liames, não virá me atingir, também e beneficamente?
Como a Divindade não é aquela cegueira fria de que nós cogitávamos
antigamente, e tudo o que faz é por meios naturais, sempre espero
que no bojo de uma ação aparentemente alheia a mim, venha a mim
diretamente alguma coisa.
– Quando
todos na terra pensarem assim... – considerei.
E
ele emendou, com a sua sempre boa dosagem de senso comum:
– Quando
todos na terra pensarem assim, a humanidade viverá feliz, porque o
bem de uma célula, verdadeiramente, só poderá ser como produto do
bem geral. Menos disso, convulsões de toda ordem poderão abalar os
fundamentos de toda e qualquer felicidade temporal.
– Nem
que a tal “morte” tenha de intervir! – interrompi-o, por me vir
à tona uma avalanche de recordações que tais, todas de triste
ânimo.
Ao
que ele, entrementes saltava um valo que carregava a sujeira para
lugares de treva, de onde vinham muitas vezes bramidos tristes,
lúgubres, concluiu, lastimoso:
– Nem
se duvide... É só mesmo com muito de mortes e renascimentos... O de
que, porém, é bom tratar, é que nem a morte, com todo o seu
séquito de vida e contundentes lições, faz às gentes do mundo, o
que se julgaria por cálculo, por teoria.
Nesse
momento, quase transpondo o portal da Diretoria, parei para indagar
melhor, pois não havia entendido bem o sentido do palavreado. E ele
repetiu, mais explícito, por outros termos:
– Pois
você não sabe que apesar dos testemunhos do plano astral, fazendo
se manifestem nos Centros Espíritas os seres mais sofríveis, para
servir de exemplo rude, nem por isso os encarnados apresentam, ou
tratam de apresentar, melhor cartel de conduta?
– Bem,
– intervi – você poderá negar a qualquer um seu direito de
experiência própria? Comece por nós o seu raciocínio: quanta
gente nos disse no mundo, sem dúvida, que estávamos pensando
erradamente? No entanto, para nossos bestuntos, quem estava militando
em erro?
– É
razoável... – concordou ele. – E isso prova que o bicho mais
rezador não é o mais...
E
terminaria o pensamento de um modo menos recomendável no gênero
humano, se o chefe não tivesse vindo ao nosso encontro, por
ouvir-nos falar. Depois dos cumprimentos, disse-me o chefe:
– Janeiro,
eu o felicito. Vai deixar-nos, rumo a seus mais belos ideais. É de
meu dever humano e dirigente, abraçá-lo com fervor, sentindo o
valor de uma inteligência vigorosa e dócil.
E
como me vi num repente face a face com tudo quanto tinha sofrido nos
lugares onde faltava o ar suficiente, eis que ele, penetrante que
era, sem ser um grande espírito, observou:
– Felizes
aqueles que aproveitam as sábias lições da vida, meu caro Janeiro.
Errar é da própria vida, uma vez que o sentido da mesma é de baixo
para cima, da ignorância para a sabedoria, da inconsciência para a
consciência. Quantos estão em condições piores, muito piores, e
esquecem-se de que sofrem de si próprios?
Fez
uma pausa regular e disse, ilustrando sua tese:
– Ontem,
meus amigos, fomos socorrer um grande general do mundo, que há quase
trinta anos medrava pelos campos de sangue, morticínio e gemidos,
que lhe tocaram por turno, com a desencarnação. Assim que lhe
dissemos que era já desencarnado e que sofria o produto de suas
próprias ações, perguntou-nos, ansioso:
– Então,
meu senhor, sofro por ter perdido alguma batalha?!...
E
quando lhe foi dito que sofria por tê-la ganho, pois foi um
vitorioso até o final das campanhas, ele que compreendia bem o dever
das conquistas externas, ficou sem compreender o sentido do dever
para com as conquistas de si mesmo, dos sagrados impérios do
espírito, resmungando deste modo:
– Mas!...
Porventura!... Meu Senhor!... Não estará falando com alguém que
não é quem julga ser? Pois se fui um vencedor, de que me acusaria
Deus?!...
– E
que fez com ele? – indagou o amigo Simão.
– Como
não é justo pedir conselho a desvairados, e como é justo tratá-los
como a doentes, desde que havia disposição reequilibrista em seu
favor, tiramo-lo de onde estava e, dentro em pouco, será o seu
substituto nos serviços de faxina, no nosso mui prestimoso serviço
socorrista...
Um
mundo de coisas passou pela minha mente, com relação ao ensino do
Cristo, sobre os exaltados que seriam humilhados, e vice-versa.
Enquanto isso, depois de receber do chefe o afetuoso abraço,
entramos para o seu gabinete. E deu-me ele o cartão que disse ter
vindo de seus superiores hierárquicos, com o qual deveria eu
apresentar-me no local para onde me levaria um dos seus auxiliares.
Simão
estava de folga. E como eu tivesse recebido ordem de não tornar ao
serviço, fui com ele dar uma volta pelos arredores infelizes, para o
lado onde tudo era trevas, embaçamento, gemidos e blasfêmias. Não
queria sair dali, sem levar na lembrança certas impressões
desagradáveis, para, eventualmente, um dia me servirem de avisos
consciencionais. Ali, talvez mais do que em outras plagas, estava
vigorosamente exposta a ação da lei de causa e efeito.
Embora
protegidos pelas barreiras defensoras, penetramos tanto nas brumas
dolorosas, que, o terror parecia querer nos assaltar, fazer-nos
correr. Uivos, gritos, berros, gargalhadas terríveis, lástimas,
pedidos de clemência, vergastadas, palavrinhas e palavrões;
influências energéticas perniciosas, mau cheiro, fedores
insuportáveis, de tudo havia ali e tudo nos transmitia seu recado
macabro.
– Quantos
se julgarão culpados de suas dores? – indagou-me Simão.
– Não
sei... Mas como sempre culpamos aos outros pelos nossos fracassos...