DE
TUDO CHEGA A HORA
Naquela
manhã invernosa, e precisamente por assim ser, dei-me ao leito por
pouco mais do costume. E sonhei um sonho terno, um deleitoso deslizar
por cima de nuvens, sendo que minha mãe me conduzia pela mão. Coisa
estranha! Antes de acordar trouxe-me à beira do leito, havendo dito:
— Hoje
à tarde, com o sol quente, vá às rochas e deite-se a ponto de
dormir, ouviu?... E repetiu isso por vezes, tendo-lhe eu respondido
favoravelmente, por sentir em mim mesmo que assim devia ser.
Ao
acordar, naquele mesmo repente, tinha de tudo a mesma noção, a
mesma certeza, a consciência exata de que assim seria o melhor e
mais justo. Em minha alma reinava também um ânimo novo; um prurido
de fé e novas esperanças. A vertente interna aflorava em jorros de
vida e anseio de novas épocas. Eu me estudava, focalizava-me e com
ou sem explicações consentâneas, ou aparentes, assim me
surpreendia. O sol brilhava, de novo, nos horizontes de meus dias e
de minhas obrigações!
Posto
em pé, fui à cozinha, onde Sinhá Marta reinava, contando-lhe o
maravilhoso sonho, todinho, detalhe por detalhe.
E
ela disse suas coisas:
— Valha-me
Deus!... Rezei tanto por Sinhá Áurea... Só mesmo Deus querendo e
Sinhá Áurea aparecendo!...
Olhando-me
bem no rosto, com aqueles olhinhos que se perdiam no fundo das covas
obituárias, inquiriu:
— Sinhô,
vai às rochas?... Não vá faltar!...
— Claro
que irei, Sinhá Marta.
— Mas
tenha cuidado!... Fique em lugar seguro...
O
dia transcorreu com sabor e interesse por tudo. Vi a meus filhos com
outros olhos, mimei-os, senti vergonha do já feito. Mas, que fazer,
que dizer, como inculcar-me tanta culpa, se, afinal, contra mim
mesmo, se levantava aquela tempestade dentro de mim? Assim como ao
homem não é dado poder contra os tufões e cataclismos telúricos,
assim também nada podia contra um mal de alma que das profundezas de
mim mesmo se levantava, pondo-me a vida em tresmalho.
Aquele
dia, porém, foi um dia de reconquista feliz!
— Agora
vou ao penhasco! disse a mim mesmo, pelas três e meia da tarde,
sobraçando uns sacos de estopa, para deles fazer pelo menos
travesseiro.
Desci
margeando o rio, venci aqueles dois quilômetros e pouco, subi o
último morro e encaminhei-me às rochas, tendo arrumado lugar seguro
numa cavidade. Via apenas uma nesga do horizonte; nada do rio, só
ouvindo o ronco das águas em revolta. Arranjei os sacos de modo tal,
ficando com as costas apoiadas em maciez e a cabeça regularmente
instalada. Procurei topar Morfeu, frente a frente.
Não
sei precisamente quando tenha adormecido; mas sei que ouvi dizer, com
voz firme e imperiosa:
— Tire
os sacos debaixo do corpo e da cabeça!
Devolvido
à consciência por advertência tão inesperada, mas feliz pelo
ocorrido, atirei os sacos ao rio, calcando a cabeça na face
granitosa da pedra.
E
fiz, de novo, por adormecer.
Pruridos
suaves, então, passaram a me acariciar todo. Era como vagar sobre
nuvens, cavalgar a própria brisa, do ir ao embalo de cânticos
angélicos. E saí, naturalmente que saí do corpo, vendo-o ficar
para ali, deitado na frincha da rocha, como se me fora coisa de
imensa importância.
Condenados
aos grilhões carnais, muita vez, lastimamos o fato; em vendo a
máquina para ali, como utensílio primoroso, senti o quanto lhe
apreçava. Tangido por alguém, revi na minha memória a tudo quanto
podia ter já feito e vivido. E senti que devia àquele instrumento
um mundo todo de dívidas!
— Venha,
filho! — convidou-me minha mãe, estendendo-me a mão
carinhosamente. Fui com ela e permaneci no ar, sobre o rio, sentindo
a alma em deleite e o corpo, porque tinha um corpo, em ponto de
pluma. Era leve, feliz, superior.
— Isto,
— tornou a dizer minha mãe, é o início de uns trabalhos. Temos
que cooperar nos serviços de Jesus e Suas legiões amoráveis;
devemos obrigações, à Terra e à sua humanidade. Você vai
contribuir para espraiar o Consolador no mundo, que, como promessa do
Céu à humanidade, fornecer-lhe-á informes preciosos sobre a vida e
seus confins, a Terra, e o infinito que a cerca.
— Farei
o que Deus queira, mamãe...
— Procure
dar de si o possível, assim como tem com que fazê-lo, sem julgar
jamais que Deus lhe venha a faltar com apoios. É hábito do homem
atribuir a Deus a responsabilidade de suas negligências. Não quero,
portanto, que pense sobre Deus com imposições quaisquer; quero que
faça o possível com o que tem e pode. Deixemos as ferramentas que
não temos em paz, lembrando que o bom trabalhador usa do que tem
para produzir com satisfação o que lhe esteja ao alcance.
— A
senhora sabe que nada entendo destas coisas...
— No
fundo da mala velha, estão jogados uns livros... Tire-os para ler.
— Está
bem, mamãe. E dou graças ao bom Deus.
— Naturalmente,
e volte ao seu corpo.
E
com isso, arrastado como que por um vendaval, dei acordo de mim;
tinha a parte da cabeça dolorida, mas também tinha a alma
transbordante de alegria.
Não
andei até a casa; corri, ansioso por relatar a Sinhá Marta o
ocorrido. E ela, marejantes os olhinhos fundos, nada disse, nada pôde
dizer. Olhou para cima, como que a buscar um Deus de fora
prosternando-se ante Ele, no santuário de sua alma bem formada.
Deixei-a
entregue a suas meditações, indo para o meu quarto. E orei com
fervor, assim como nunca tinha feito em toda a vida. Depois, revolvi
a mala velha e retirei dela uns poucos de livros, dentre eles quatro
espíritas e dois ocultistas, todos editados em Portugal e trazidos
para o Brasil por um tio de muito falecido.
Nunca
os havia manuseado; mas sempre seria tempo de o fazer. E ali começou
a minha busca teórica sobre as coisas do homem, que são as coisas
do espírito. Das coisas de Deus, porque são as coisas do homem. E
nesse amálgama teórico-prático, de tal modo me enfronhei, de tal
jeito me fiz apóstolo, que hoje, dou por graça de Deus o assim ter
conseguido realizar. Porque, enquanto os sublimes ensinos passavam
das páginas pródigas aos recessos do meu entendimento, aos arcanos
de minha consciência, em evidência de ações decentes fazia por
transcorrer os dias. E posso afirmar que era isso, justamente isso, o
que Deus esperava de mim. Aliás, é isso o que espera de todos, pois
que de palavrórios forro está o mundo, não sendo menos certo,
também, estar besuntado de formalidades presumidamente repletos de
virtudes absolutistas.
Todo
caso, os que compram ou os que vendem tais formalidades, sejam elas
de teor material ou intelectual, não provam, e nem jamais poderão
fazê-lo, a eficiência de seus argumentos. Os meneios são feitos
com esmero clássico, e com grande pompa a distribuição, bem assim
como principesco é o preço; mas, para todos os efeitos, a
comprovância do valor intrínseco é zero! Tereis sempre disso a
prova, somando o número daqueles que se apresentam nos vossos
trabalhos práticos, apesar das muitas regalias adquiridas, como
simples viajores da inconsciência e, não raro, do desespero. E que
lei salvadora é o amor! É que em Deus não prevalece o princípio
de dissensão! E por ser assim, irmãos mourejam pelas regiões menos
recomendáveis, e algumas até indescritíveis, apaniguados de todos
os credos e matizes de credos.
A lei
é simples — quem não souber, busque saber; quem souber, faça por
praticar. Não se pode ser eternamente ignorante e nem negligente sem
responsabilidade. A lei de progresso é um fato e a maior soma de
conhecimentos implica em maior grau de obrigações. Ninguém poderia
fugir a essa regra natural.
Fiz-me,
portanto, bom leitor e regular praticante.