Capítulo V
Um belo fenômeno, e que impressionou bastante, foi o encontro de meu pai, uma tarde, quando passeava nos arredores da cidadezinha, como de hábito fazia, quando nenhuma ocupação me tomava o tempo.
Estávamos entrando no crepúsculo, quando se chegou aos poucos, surgindo bem no centro de uma nuvem azulino-doirada. Após cumprimentar-me, tal como se fosse um homem de carne e ossos, continuou a marcha comigo, entrando a dissertar sobre um seu amigo de antanhos tempos, que em virtude de suas insinuações cometera erros graves, vindo posteriormente a recalcar faltas e agravos, descendo para lugares medonhos, onde tudo fazia para sair, encontrando porém consideráveis dificuldades.
– Esse pobre irmão – adiantou meu pai – clama aos mentores pela sua oportunidade de resgate; os mentores, por sua vez, consideram os motivos de culpa, no mecanismo das vidas e dos eventos funcionais. Como é fácil de imaginar, estou de permeio em toda a trama que o prende à inferioridade. É o círculo social e acional a envolver criaturas e mais criaturas, atingindo aquele grau que se diria de saturação jurídica, sem cujo desfecho não é possível resolver coisa alguma. Estou intimado a dar-lhe atenção, concorrendo com os recursos à mão, a fim de o encaminhar. E como sei de seus propósitos e venturosas faculdades, venho pedir mais esse favor.
Encantado com a oferta serviçal, respondi:
– Tudo, na vida, se resume em ser útil a Deus através do próximo; fora dessa norma fundamental o Céu se recusa a receber o vivente, fazendo-o permanecer à margem de suas glórias. Todos os Grandes Reveladores, e principalmente Jesus, que veio edificar Doutrina sobre a Revelação, assim o ensinaram. Fico-lhe, papai, agradecido pelo convite... Naquilo que Deus queira e eu possa, conte com a melhor das atenções.
Não sabia, no momento, que mão teria apertado, se física ou substancial; sei, no entanto, que lhe apertei a mão, pois ele disse ter pressa e se foi, sorridente e muito feliz.
À noite, depois de fazer minhas orações, ou preparo psíquico, senti que frêmitos deliciosos me envolviam, até que me dominaram por completo. E logo mais, em gozo de espírito, senti que estava no ar, leve qual pluma, entre um grupo de espíritos, dentre os quais meu pai se achava.
– Aqui estamos – disse ele – para trabalhar. Afinal de contas, Teodoro, a vida é simplesmente a luta que se trava entre as trevas e a Luz Divina, no íntimo das almas. Tudo o mais é apenas derivação, é corolário. Um é como todos e todos são como um só. Devemos, portanto, lutar pela redenção de todos. Esse é o modo geral, essa a linha normal e necessária. Acresce, porém, que muitas vezes metemos o bedelho na vida alheia, complicando sua norma evolutiva, prejudicando o programa ordinário. Surgem, então, os deveres de ordem particular, aquilo que deriva de ações incidentais, de compreensões individuais. Dá-se muito desta coisa, meu filho; muitos de nós erramos tremendamente, pensando agir bem.
Um dos presentes, criatura de feições graves, interferiu:
– A regra, no mundo, é que cada qual tem o direito de defender aquela causa que julga ser a justa ou melhor. No entanto, aquilo que é justo ou melhor, segundo o critério humano, pode estar em desacordo com a Lei de Equilíbrio, vindo a registrar agravos, e agravos que deverão ser desfeitos através de obras, assim como através de obras foram levados a termo.
Outro deles, tomou de imediato a palavra, para acrescentar:
– É comum, portanto, que todos possam errar. Visto isso, deve tornar-se comum a noção de compreensão e perdão entre os irmãos em geral. Sem perdão entre irmãos não é possível haver melhora geral; e como sem compreensão não pode haver o indispensável perdão, eis aí que devemos trabalhar pelo esclarecimento. A Doutrina do Cristo fundamenta-se na Revelação que esclarece, para que daí surjam a compreensão, o perdão e, como conseqüência direta a consumação harmônica. Compreendamos, portanto, que quando houver paz entre as partes, segundo a Lei ou em consonância com ela, haverá paz forçada por ela para todas as partes. Cumpre atender para esta chave – ativar a Lei em favor de todos, para que tenhamos parte na harmonia geral.
Meu pai falou, observando:
– Duro é, porém, fazer com que todos compreendam a função da Lei!
E um deles emendou, concluindo:
– Eis o motivo de tantos trabalhos e de tantos fracassos! Marchemos, porém, em busca do Amor, que o salário vem de Deus e não da incompreensão dos homens, sejam encarnados ou desencarnados. Vamos dizer aos de boa vontade, que as dores representam as próprias faltas cometidas; e aproveitemos a oportunidade para avisar aos endurecidos que ninguém pode lutar contra Deus e sair vitorioso.
Envolvido na aura preciosa que eles formavam, entramos numa zona densa, mal cheirosa e compressiva. Dentro de segundos estávamos numa cidade enorme, ensombrada e triste, porém movimentada, cheia de gente pelas ruas.
– Aquele a quem devemos atender – salientou meu pai – com muito custo atingiu esta região e cidade. Aqui, como devia acontecer, deveria entrar em contato com outros errados ou cúmplices... Eu sou um deles, como já disse. E sou aquele que está incumbido de articular entendimentos entre todos. Como devem entender, alguns estão em situações e condições favoráveis, sendo que outros se acham em tristes lugares. Logo, amigos, a trabalheira vai ser lentíssima em andamento e complexa em suas partes e minúcias.
Um dos componentes anotou:
– Tudo é questão de começar!
Outro anuiu:
– Nada se conclui sem movimento!
Ainda outro observou:
– Temos algum programa elaborado?
Meu pai esclareceu:
– Começaremos levando ao Jonas a certeza do auxílio superior, auxílio que, como soe acontecer, advirá dos trabalhos das partes e do todo coletivo nele entrosado. Saberá que estamos agindo, mas ficará sabendo, também, que não serão de pouca monta os percalços do caminho... Reconhecerá a necessidade premente de perdoar, de ensejar todo o bem possível, de...
Após breve e significativa pausa, concluiu:
– Sim, reconhecerá a necessidade premente de orar com todo o vigor da alma, meditando palavra por palavra o Pai Nosso a proferir.
Mais uma pausa grave, cheia de impressionante comoção, para enunciar:
– Nós cometemos grandes erros, com o nome de Deus e do Cristo nos lábios! Nós fomos verdadeiros hereges! Os nossos crimes trazem as marcas da traição, porque em nome de Deus matamos e fizemos cruezas tremendas, enquanto vivíamos recitando a Lei e pronunciando orações invocativas e de louvor!... Sim, todos nós, aqueles que estamos envolvidos nesse crime, temos o dever de aprender a orar com o coração, para que as obras venham a ser de fato redentoras... Trabalhar com amor, por compenetração das verdades fundamentais, eis a grande oração! Deus não fala, irmãos, sem ser através de atos e fatos! O homem, falho que é, foi quem se lançou a fazer valer mais as palavras do que os fatos; mais a idolatria do que a consciência pura; mais os engodos formais do que a inteligência lúcida!
Descemos e fomos andando pela rua. Nossos trajes eram, agora, os de todos eles. Estranhando a cor local, indaguei:
– Está para anoitecer?
– Não, isto aqui é a plena luz de que eles gozam.
Um outro emendou, simplesmente:
– Sombras por dentro, sombras por fora, nada mais. Não está certo?
Meu pai pormenorizou um pouco:
– Aqui, Teodoro, ainda sobrevivem vetustas civilizações, em concordância e relação com as marcas psicológicas de seus habitantes. É a velha regra: os caracteres fazem o meio e o meio força os caracteres. Como é raríssimo encontrar quem pretenda lutar intimamente pela verdadeira revolução, raramente alguém é atingido pelos recursos estranhos, como agora acontece... Isto é, acontece em parte.
Como fizesse impertinente silêncio, interroguei-o:
– Que quer dizer esse “em parte”?
Lá veio a explicação:
– Eu não poderia, e alguns outros também, progredir, sem fazer o possível para que eles também avancem. Estamos ligados pela engrenagem dos fatos e da Lei, havendo necessidade de melhora geral, para que todos consigam avançar, sem outras dificuldades, compreendeu?
– E se alguns deles quiserem continuar do contra?
Elucidou-me:
– Eu disse que sem outras dificuldades, não disse? Pois o devido é devido, mas não para todos os efeitos e conseqüências; uma vez que alguns teimem em fincar pé na má vontade, segue-se o que é segundo a Justiça. O que não pode ser, no entanto, é que alguém fique atrás, sem as devidas atenções por parte dos demais parceiros de falta.
– Como é simples e complexa a Soberana Justiça! – exclamei.
Ao que um deles expressou:
– Ainda que custe bastante, por vezes, ao nosso entendimento...
Curioso, interpelei-o:
– Por que, assim diz?
Ele explicou:
– Você está ouvindo dizer, que seu pai e outros erraram em nome de Deus e do Cristo, não é assim? Pois eu cometi graves erros pelo simples fato de chegar à conclusão de que não poderia haver Deus nem Justiça! Metido que estava em provas duríssimas, para efeito de resgate, mas desconhecendo os porquês, dei para negar tudo, tudo e tudo! Mais tarde, vindo a sobreviver à morte, comecei a reconsiderar os fatos e recebi os devidos esclarecimentos. Mas, para infelicidade minha, outros erros já havia acumulado...
Outro, da comitiva, interferiu:
– Enfim, a dor é sempre filha do desequilíbrio.
Estávamos chegando ao local previsto. Meu pai anunciou:
– Jonas é um clérigo fanático... Isto é, se não fosse fanático não estaria por estas plagas ensombradas e rústicas, mal cheirosas e agourentas. Quero lembrar, no entanto, que devemos evitar certas referências que possam parecer acusações. Esta gente é cheia de nervos e tiques concepcionais, por pouco e por nada entendendo tudo pelo avesso. Creio que devo eu falar a eles, ficando vocês para aquilo que talvez seja necessário fazer...
– Fazer o quê? – perguntei, afoito.
Meu pai deu-me a devida explicação:
– Passaremos por emissários do Supremo Poder, mais do que normalmente o somos, a fim de influir ao máximo. Sugestão é o recurso a ser aplicado, pois temos de abalar nele tudo quanto seja possível, a começar da centelha, isto é, de dentro para fora.
Desejei saber:
– Estaremos em face dos sete corpos do homem, segundo a Teosofia?
– O homem, na carne ou fora dela, tem corpos e mais corpos, porque o perispírito é constituído de elementos vários, em densidade. Começando na centelha ou alma, vem para as gamas energéticas mais sublimes, depois atinge as primeiras gamas etéricas, vindo então para as demais substâncias grosseiras, como sejam os gases, os líquidos e os sólidos do perispírito. Porque, como sabe, para nós este corpo é naturalmente um corpo, apesar de que temos, felizmente, algum domínio sobre ele.
Ainda insuficientemente esclarecido, perguntei:
– Em que sentido iremos atuar através da sugestão?
– Por sugestão entendemos a movimentação dos poderes mentais e eletromagnéticos, por onde começam as ações de caráter mais exterior; iremos fazê-lo pensar fortemente, para que abale em si mesmo o mundo conceptivo em que está envolvido, ao qual se acha escravizado desde muito. O seu Deus é aquele do Velho Testamento, o seu Cristo é aquele da Santa Inquisição e a sua Lei é aquela que não só permite, mas que exige a contradição, para gáudio de seus infelizes arautos. Para ele, Deus está fora de toda a chamada Criação, não havendo irmandade, também, entre tudo quanto existe, seja espírito ou matéria. Rituais e dogmas são os recursos, sendo os clérigos os agentes da salvação. O Amor, a Ciência e a Revelação, tudo isso nada vale. As questões de consciência, que são as bússolas do espírito, também nada representam. Enfim, a idolatria é tudo e os fatores intelecto-morais de nada valem. Pelos seus ídolos e pelas suas bobagens formais, seria capaz de chibatar sua própria mãe e de esganar quem quer que fosse, numa hora de louco frenesi.
Um dos outros emendou:
– Você bem sabe, pois o temos ouvido pregar que a morte não faz santos nem devassos, mas permite ao homem que conserve a sua personalidade. Portanto, tenha em mente que a estupidez também tem direito a mercado nestas plagas, pois estas plagas, para isso, estão fartas de recursos e possibilidades. Deve saber, antes de mais nada, que isto não é o inferno teologal, porque reina aqui a religião de nossos pais, aquela que Roma inventou, quando corrompeu o Cristianismo verdadeiro, edificado sobre a Lei e a Revelação. Esta cidade, saiba, é para eles muito civilizada!
– Compreender eu compreendo; mas é tão rústico isto que vemos e temos pela frente, que parece apenas um trágico romance.
– Entretanto – advertiu meu pai – a Terra está cheia de gente que não se lembra da Lei, tem horror pela Revelação e vive dobrando joelhos defronte a tudo quanto é idolatria! E tenha em mente, ainda, que se não fossem alguns valiosos recursos da civilização, grandes derramamentos de sangue a Inquisição seria capaz de causar, por afeição à simulação e ao comércio religioso. Não está a Terra longe disto, mesmo naquilo que parece melhor, que sabe a religião, que parece civilidade.
Vencido, admiti:
– Realmente. Quando um homem se veste de tal ou qual modo, e faz imagens de tal ou qual forma, e inventa sortilégios à guisa de atos de fé, postergando, para efeito de religião, a lugar inferior ao que é consciência e virtude, nada mais se pode pretender em matéria de escândalo.
Ao que um outro, sorrindo, anexou:
– Pior fica aquele que paga e sustenta essas besteiras!
Ainda outro ponderou:
– Cumpre notar que há muito de boa fé em tudo isso...
E meu pai sugeriu:
– Quem é que come e bebe, calça e veste, e faz tudo quanto é necessário à custa de apenas teorias e fingimentos? Até quando, em nome da fé, a fraude tem o direito de passar como sendo virtude ou justiça? Quando eu estava no mundo, usando as prerrogativas de alguns conceitos menos elegantes, dizia que a Terra ainda era um mundo de bugios e macacos, tal a quantidade de coisas inferiores que seus habitantes se gozavam em sustentar e fazer funcionar. Devo dizer, depois de tudo quanto tenho visto, que não andei errado, tendo sido apenas franco. A função da matéria é servir, é ser sujeita ao espírito, não é para representar a Divindade, não é para significar a Moral, a Ciência, o Amor nem a Revelação. Que se deve pensar de quem deixa atrás a supremacia do Intelecto e da Moral, que são os verdadeiros motores do espírito, para se sujeitar a formalismos e a idolatrias, simulações e engodos ritualísticos? Não é própria de símios, semelhante atitude?
A conversa findou na entrada de um templo à romana. Dentro, tal como na Terra, havia de tudo quanto era próprio de quem não sabe amar a Deus em Espírito e Verdade. Muita gente sentada, ajoelhada, fazendo adorações a seu modo, segundo a marca evolutiva de quem era portadora. Cheguei a me sentir mal, constrito, pois eu já havia subido um pouco em matéria de culto espiritual. Notando a minha tortura íntima, observou um dos componentes do grupo:
– Não fique triste e contrafeito por isto, que coisas piores ainda medram por este mundo de Cristo. Na Terra ainda existem seres humanos que comem a seus semelhantes, como existem heróis que falam em Deus e fazem guerras, estraçalhando velhos e crianças. Isto que vê, Teodoro, é apenas a baixeza em feição algum tanto amenizada. Eu creio que deve usar de paciência e de perdão, porque afinal de contas estamos entre criaturas que se condenaram, que se entregaram à inferioridade. E na Terra, que a Humanidade toda festeja seus heróis sangrentos?! E no seu mundo, que nas festas religiosas esfolam inocentes animais e os devoram, como se isso constituísse um ato sagrado?! Quantas formas de roubo têm curso legal no mundo em que vive?! Que povo já abandonou a inveja?! Onde está a raça que repeliu o adultério?!... Quantas criaturas, dentre as que oram, riscaram a mentira de seus usos e costumes?!... Quantos ainda juram pela mentira?!...
– Compreendo, compreendo... – concordei, meio apavorado, premido pelo triste ambiente e pelas verdades dolorosas ali evocadas.
Antes de dar-se por satisfeito, acrescentou ainda:
– Sim, meu amigo, os métodos materiais e grosseiros de culto, que medram nas regiões inferiores, revelam apenas o grau de involução em que se acham tais habitantes, ressumbram o animalismo e o atraso em geral. Na Terra, entretanto, os que mais se julgam sábios e conscientes, senhores da Verdade e fartamente civilizados, eles mesmos são os expoentes da idolatria e do fetichismo. Tanta é a grosseria, e de tal modo reina desenfreada, que apesar de ser simplesmente errada, e nalguns casos criminosa, passa ainda por ser a própria Verdade! Não alimentemos, pois, prevenções contra esta pobre gente; sendo trevosa e sofredora, é muito mais digna de respeito do que aqueles que na Terra se julgam ministros de Deus, porque a eles cabe, na maioria dos casos, a responsabilidade destas infelizes realidades.
– Tenho, para mim – disse-lhe eu – que a Humanidade melhorada será aquela que viva da melhor maneira a Moral e a Revelação. Enquanto as gentes, para efeito de culto, ou a pretexto de religião, recorrerem a meios materiais e grosseiros, é sinal que interpretam a Deus como igualmente grosseiro e material. Isto é, pretendem que a Divindade seja como a criatura animalizada o é, nada mais.
Quem me estava à direita apontou:
– Olhe para isto e observe; toda esta mediocridade seria o paraíso para aqueles que estão nas trevas, onde reinam o pranto e o ranger dos dentes, onde as criaturas até se deformam, tangidas pelas imposições das forças mórbidas; para nós é apenas bastante sofrível, porque somos ainda pouco evoluídos; e seria infernal para os mais elevados na escala hierárquica. Logo, por Lei e por Justiça, o bom Deus dá a cada um segundo a sua conduta íntima. É pena que tantas criaturas se demorem nos planos dolorosos, por afeição à imoralidade religiosa e à péssima concepção em geral; mas, por outro lado, esse direito que favorece a tortura e a permanência nas plagas torturantes, é o mesmo que, mais tarde, quando bem aplicado, sustentará a grandeza da criatura em Amor e Sabedoria. Cumpre-nos, apenas, o serviço de ensinar o melhor caminho.
Meu pai advertiu:
– Cessou o tempo de livre conversação.
Entramos por uma porta e fomos parar defronte ao padre. Estava sentado e lendo um surrado Missal, com olhos tão pregados que nem sequer nos pressentiu.
– Salve! – saldou-o meu pai, erguendo os braços e se encaminhando a ele.
– Salve! – respondeu, admirado, lançando arguto olhar pela comitiva toda.
Com bastante ênfase, meu pai anunciou:
– Aqui estamos, padre, de ordem superior, a fim de convidá-lo para funcionar como profeta ou senhor de algumas graças! Terá que aprender a perdoar, terá que se fazer verdadeiro discípulo do Cristo, para merecer a graça de curar, aliviar e soerguer os ânimos combalidos. Como recebe, irmão Jonas, esta oferta das Alturas?
Chocado, visivelmente surpreendido, murmurou:
– Já era tempo!... Já era tempo!... Há dezenas de anos que me subtraíram aos piores lugares, pelo muito zelo com que agi, quando ministro de Deus na Terra!.. Fui exagerado, lá isso fui... Mas, já era tempo!... Enfim, terei a oportunidade sonhada... Sarar as doenças, consolar os aflitos, ser inspirado!...
Para mim ele parecia, nada mais do que louco varrido; mas era um padre, um homem que estava certo de não estar errado, embora estivesse de todo viciado nas coisas idólatras, formais e rampeiras, vestígio seguro de ser um espírito bastante inferior, capaz de conceber a Deus como sendo apenas maior nos mesmos erros, nas mesmas grosserias, amante de engodos, pagodeiras e simulações horríveis.
– Aqui tem! – disse meu pai, enquanto sacou de um bolso pequeno manual de ensinamentos.
Ele apanhou o livrinho, olhou-o bem e leu, em voz alta e sonante:
– “AS FORÇAS QUE CURAM, PELOS EXEMPLOS DE JESUS CRISTO”.
Meu pai insinuou, falando com autoridade:
– Sua vontade, padre, fará o mais tudo! Viremos dentro de alguns dias, para saber de sua resposta. Está certo?
Afoito, respondeu:
– Dentro de alguns dias?!... Respondo já!...
Teatralesco, meu pai advertiu:
– Alto! Alto! Um padre é apenas um padre, mas um profeta é um profeta!
Diante da sua mudez assombrada, meu pai adiantou:
– Ordens de mais Alto, padre, são ordens de mais Alto! Terá de fazer alguns exercícios mentais, orações, e, acima de tudo, perdoar!... Como se estivesse pregado num lenho infamante, a exclamar: “PERDOA-LHES PAI, PORQUE NÃO SABEM O QUE FAZEM!”
O padre estava pasmo, boquiaberto, mudo.
– Como quer entender, padre Jonas? Aceita? – repetiu meu pai.
Erguendo os braços, murmurou, com voz soturna:
– Eu faria isso agora mesmo!... Agorinha!... Eu quero!...
Qual se fora grande artista vivendo cena trágica, meu pai exprimiu:
– Pensar é pensar!... Querer é querer!... Poder é muito mais!...
O padre admitiu, baixando a cabeça:
– Compreendo... Compreendo... Eu pequei, matei... Matei!...
Meu pai prosseguiu:
– Terá que aceitá-lo, rendendo graças a Deus! Virão substituir-lhe... Fará retiro nas montanhas, junto à vida simples!... Sua alma subirá, sua mente alcançará concepções elevadas!... Seu coração fará prodígios sentimentais!... E o bom Deus enviar-nos-á de novo, para sabermos de sua resposta. Fica assim combinado?
– Fica... – respondeu, compenetrado, submisso.
Meu pai armou a cena final:
– Sua aceitação representa merecimento considerável, Jonas! Devemos, agora mesmo, trasladar a benção a si endereçada pela aceitação. Venha, poste-se à minha frente, para que todos lhe imponhamos as mãos em nome do Senhor!
Ele veio, ajoelhou, tendo cada um de nós colocado as duas mãos sobre a cabeça calva do padre.
– Oremos! Invoquemos o Senhor! – bramiu o meu progenitor.
Houve oração profunda, concentrada, potente. O padre fremia debaixo de nossas mãos, trepidava, pronunciava palavras desconexas. Terminando, meu pai avisou-o:
– Iremos daqui, para falar ao seu governador. Assim que for substituído, passe alguns dias longe das gentes, no seio da floresta, compreendeu?
Trêmulo ainda, o padre afirmou:
– Farei tudo a rigor! Senti que o Céu vinha sobre mim!...
Fizemos a despedida e nos fomos, para avisar o chefe da região. Apesar de tamanha inferioridade, apesar da truculência a reinar em tudo e para tudo, a ordem em tudo se cumpria. Nada mais do que um lugar ensombrado para almas ensombradas. Estavam, porém, ligados ao Poder Supremo, não apenas por força da gênese, mas em virtude das observâncias postas em prática, da vontade de acertar. E como poderiam subir, melhorar, conseguir oportunidades, espíritos assim chafurdados no erro e nos tremendos crimes? Como acertar, sem ser lentamente, penosamente?
Foi assim que terminou aquela grande viagem. Adiante direi, como foram concatenadas estas informações, estes registros, a fim de serem relatados.
Extraído do Livro:
áudio e texto