CAPÍTULO III
A custa de muitos esforços fomos rumando a vida para melhores dias. As irmãs foram crescendo, eu me fiz homem, a nossa progenitora apresentara os seus primeiros cabelos brancos.
Daquela data, em que minha mãe dissera para não mais falar no assunto enquanto não soubesse bem o francês, de fato nada mais lhe perguntei. Todavia, três pessoas ficaram gravadas em minha retentiva: a senhora Alzira, o senhor Tristão e o professor Lago.
A senhora Alzira demonstrava, pelo semblante sereno e grave, saber coisas de que não tratava com qualquer pessoa; sua bondade emanava de nobres sentimentos, suas ações refletiam elevado grau de consciência espiritual. Não sendo letrada, a sua casa era visitada por gente merecedora de melhores créditos, mormente quando algumas desgraças lhes atingiam a vida. O pároco dizia que era feiticeira, mas a palavra do pároco produzia efeitos contrários, porque enquanto ele fazia salamaleques e mandava ajoelhar diante de imagens, e seguir rituais, coisas que de nada valiam nem coisa alguma podiam produzir, a senhora Alzira aconselhava e atacava os fatos em cheio, instruída por quem ela dizia que sabia onde tinha o nariz. Andei por longos dias a lhe vasculhar as redondezas, perguntando a seu respeito às pessoas que lhe pediam auxílio espiritual.
Algumas pessoas diziam que estavam procurando melhoras, que ainda lhe não conheciam os poderes; outras pessoas emprestavam-lhe grandes forças, diziam que tinha valores para auxiliar, mas que julgava os propósitos para prometer auxílio. O maior número confiava em seu caráter superior, pois sendo na juventude muito formosa, e tendo tido muitas ofertas de casamento, mantivera a sua liberdade individual, afirmando que sua vida era devida aos objetivos de Deus. Quando eu completei vinte anos, fui-lhe ao encalço, perguntando-lhe algumas coisas referentes ao meu destino em geral.
– Eu sabia – disse-me ela – que você viria até mim quando a hora chegasse. Agradeço a Deus por isto que vem de ocorrer. Mas, conforme o dito por sua mãe, é melhor que faça estudos melhores, antes de saber algumas verdades práticas. Sua vida é para ser bem empregada, como a de todos os filhos de Deus. Depois disso, é bom considerar, terá ainda o direito de relativa liberdade, para enveredar por rumos que bem quiser, em matéria espiritualista.
Adiantei:
– Quero seguir a trilha exemplificada por minha mãe...
Antes que eu terminasse, aparteou-me:
– O exemplo de sua mãe é louvável; mas a melhor conduta é você mesmo saber e decidir. Não fale já em nome de conceito algum, porque antes dos trinta anos a sua mentalidade não estará pronta. Lembre-se, Teodoro, daquilo que ora lhe digo, eu que tenho seguido seus passos dentro e fora da carne, observando sua conduta, apreciando seus esforços. Vá, meu rapaz, procurando sustentar bem alto o pálio da Pureza e da Sabedoria. Sem Moral elevada nada se consegue perante Deus, embora o mundo terreno possa vir ao nosso encontro, para nos ofertar todos os bens possíveis. Também o Conhecimento deve ser procurado, porque a ignorância é o único diabo que realmente existe. Cumpre amar a Deus com todas as forças do cérebro e do coração. Fora disso, Teodoro, os homens se fazem joguetes nas mãos das idolatrias e das explorações inventadas por criaturas sem pejo.
Eu estava encantado, porque sua voz parecia vir dos confins do Infinito. Sua fisionomia revelava tremenda segurança daquilo que dizia. Seus olhos grandes e bonitos, amendoados, falavam mais do que a sua boca. Ela se aquietou, em certa ocasião, para me oferecer a palavra. Eu calei, porque senti que ela tinha muito para dizer, enquanto eu tinha tudo para ouvir.
Dando-me a mão em sinal de despedida, adiantou:
– Estude o quanto puder, sem se deixar influir, pois importa que a sua futura conduta represente o melhor de suas convicções. O mundo prepara-se para novos tempos, quando a Doutrina de Jesus deverá ser reposta no lugar e em todas as partes da Terra. Vá, meu rapaz, e que Deus lhe ilumine a mente.
Fui, com a alma transbordante de alegria. Aquela mulher parecia alguém vindo das alturas celestiais. Sua casa não tinha imagens, suas maneiras eram limpas e severas; a impressão que causava era ótima, embora um tanto advertencial. Ela deixava na gente um sentimento de precaução, qualquer coisa que significava atenção nos mínimos detalhes da vida, como se fosse fiscalizar a conduta das pessoas que com ela procurassem entendimento.
O senhor Tristão fora por mim fartamente abordado. Eu nada lhe disse de minhas pretensões, nem de coisa alguma observada por minha mãe. Notei, entretanto, que ele procurava a Verdade, mas por todos os caminhos possíveis, em grosso ou em linhas gerais, sem se deter nos pormenores, nas nuances doutrinárias. Era de todo anti-clerical, como toda e qualquer pessoa vastamente lida em matéria de espiritualismo fundamental. Sabia que a função dos cleros, verdadeiramente, era truncar nas gentes a melhor formação religiosa, por ensinar e impor idolatrias, a fim de manter as instituições, a subsistência e todas as regalias sociais derivantes.
Nem a título de tolerância suportava a Igreja Católica, afirmando que a ela se deviam os erros religiosos em que se chafurdara o mundo ocidental. Salientava o fator Revelação como sendo o alicerce do Cristianismo do Cristo, mas entulhava o interlocutor com suas queixas, achando que nada era possível fazer, sendo, como era obrigado pelas circunstâncias da vida a morar numa pequena cidade, onde todos se conhecem e falam uns dos outros.
Eu queria acesso à sua biblioteca, mas nada consegui; ele sempre tinha algumas desculpas, ora achando que não desejava influir sobre a formação dos mais jovens, ora dizendo que tinha ciúme de seus livros, porque na maior parte lhe haviam sido ofertados por amigos, com dedicatórias.
Vivia, portanto, à sua maneira de ser, aviando receitas e esbravejando contra um mundo de coisas, sem fazer nada de sério e seguro. Era um temperamental, nada mais, com alguns esclarecimentos. Com pouco ficava, e não muito bem, porque não possuía o condão de se decidir. Para ele, o pároco era um gatuno dos corpos e das almas, porque tirava materialmente o que as gentes ganhavam com sacrifício, enquanto que espiritualmente impunha conceitos que constituíam transgressões da Lei de Deus. Em compensação, o pároco dizia dele coisas fortes, menos em questões de moral, que ele sabia viver decentemente, mas a respeito de religião, afirmando que fazia tresmalhar alguns do seu rebanho. O pároco preferia dizer do rebanho do Cristo, para realçar a sua autoridade; mas os elementos mais cultos, ouvindo o pároco falar, sabiam que as lãs do rebanho ficavam ali mesmo com ele, pois do pensamento do Cristo nem ele pároco nem paroquiano algum jamais tivera notícias confirmativas.
Quando alguém lhe dizia das arremetidas do pároco, clamando por Deus e pelo Cristo contra o farmacêutico, este argumentava que devia antes apelar ao diabo, se o diabo existisse, porque é o tutelar dos inimigos da Lei de Deus. E avançava em argumentos, pois entendia que a Humanidade estaria bem mal, se tomasse o exemplo do pároco, uma vez que vivia à custa de um comércio a que jamais tinha obrigação de prestar contas ao Senhorio, nem de dar satisfação dos resultados aos consumidores de suas maquinações. Assim, dizia, enquanto por aqui estiver, de Deus e do Cristo pretende ter a devida autorização, enquanto que a ninguém presta contas, nem do Alto nem cá de baixo, sobre estar sendo honesto ou desonesto.
De fato, assim pensavam muitos, mal andaria o pároco, se lhe fossem exigidas algumas prestações de contas, de maneira prática; não conseguiria provar a realidade do seu ministério nem a eficácia do seu trabalho. Poderia provar, quando muito, que ficava a dever contas a Deus e aos paroquianos, mas contas pelas quais responderia mais tarde, longe das vistas de todos, menos de Deus. Assim, afirmava o senhor Tristão, era o único comerciante que não pagava impostos, como era também o único que podia entregar ou não as respectivas mercadorias, perfeitas ou deterioradas, sem ter que dar satisfação de modo algum.
Nada me aproveitou o contato com o senhor Tristão, contato muitas vezes provocado, porque ele sempre argumentava e nunca chegava a concluir. Sua vida, no entretanto, estava acima de cogitações no plano moral; e fazia, de maneira elegante, a sua obra de solidariedade. Os pobres tinham nele um bom amigo e benfeitor. Para nós, por exemplo, fez aquilo que só Deus lhe poderá ao certo apreciar e recompensar.
O professor Lago era tido como filósofo; não lhe votava o pároco prevenção alguma. Ele, por sua vez, entrava nas igrejas todas, protestantes ou católicas, de todos fazendo bons amigos em humanidade. Suas teorias, quer sobre o chamado Criador, quer sobre a chamada Criação, ou sobre as leis e as virtudes, eram simplesmente monistas. Tudo intrínseco, tudo íntimo, sem distâncias de ordem local entre o Pai e os filhos, fossem espirituais ou materiais. Todavia, manifestava sempre a sua preferência a dois grandes vultos – Crisna e Hermes Trimegistro. Jesus lhe era acima de cogitações, porque dizia que Lhe haviam corrompido a Doutrina, deixando por todos os foros de ser o responsável por isso que a Humanidade pensa que é Cristianismo. Ao lhe perguntar diretamente o que pensava que fosse o Cristianismo do Cristo, respondeu-me que só sabia ter sido a Doutrina estabelecida sobre a Revelação, vindo posteriormente a ser desvirtuada, em Roma, a bem do Império.
Foi ele quem me atendeu, sem saber, a fim de que eu entrasse para o conhecimento de algumas verdades bíblicas sobre a Doutrina de Jesus. Deu-me uma Bíblia toda assinalada; tudo quanto dizia respeito a Jesus estava marcado em azul, desde os Profetas; e tudo quanto se referia ao derrame de Espírito ou Batismo de Espírito Santo, também. Além disso, fizera anotações à margem, chamando a atenção para os pontos correlatos, citando os textos que deviam ser lidos e confrontados, para efeito de análise e conclusão.
Devo a ele um grande serviço, pois creio que ninguém mais poderia ter feito aquilo, com tanta justeza e segurança, quando ainda faltavam dez anos para o século vinte inaugurar seus domínios no circuito das eras em trânsito. Quando aos vinte anos minha mãe permitiu-me entrar nos assuntos daqueles tais livros e manuscritos, eu estava saturado fortemente das verdades do Cristianismo, de sua base fundamental, constituída de Moral e de Revelação.
É certo que aprendi muitas lições interessantes, vindo a saber que Grandes Mestres da Verdade haviam já passado pelo mundo, quando Jesus veio trazer a graça da Revelação ou Batismo de Espírito, a fim de facilitar aos filhos de Deus em geral as extensões do consolo que é o intercâmbio entre os dois planos da vida. A realidade, entretanto, é que eu comecei a desejar ardentemente saber como seria possível entrar em contato com os espíritos, assim como o fizeram Jesus e os Apóstolos, e todos os cristãos, até o quarto século, como afirmava o professor Lago, fundamentado na Escritura e outros documentos.
Quando lhe pedi para ler algumas obras de sua biblioteca, ao invés de se alegrar com o meu propósito, ficou bastante triste, grave e concentrado, antes de falar. E quando falou, foi para dizer:
– Teodoro, este mundo anda aos trambolhos desde que existe, com os homens a corromper e a conspurcar as leis e os ensinos derivados de Deus. Receio que você, como tantos outros, venha a saber algumas verdades, para logo mais transformá-las em objeto de pouco caso, talvez de motejo. A meu ver, rapaz, creio que deve ir pensar um pouco, antes de procurar tais conhecimentos. É melhor ser um ignorante sincero que um conhecedor escandaloso.
Notando que suas palavras me feriram fundo, até às lágrimas, deu-me um abraço forte, prometendo:
– Teodoro, você é um jovem que promete; venha buscar os livros.
Naquele dia dei entrada aos mais vastos conhecimentos filosóficos, conhecimentos que, encimados pelas verdades evangélicas, deram-me a certeza de que somos de Deus parte e relação. E ao falar em Evangelho, peço que me entendam como de fato penso, em bases morais e revelacionistas, éticas e experimentais, aplicando o cérebro e o coração com o maior ardor possível, para concluir com justeza, acima de suposições supersticiosas, idólatras e conchavistas.
Creio, com toda a sinceridade que, para haver melhora no plano geral do Cristianismo, basta se faça uma rigorosa revisão nas bases conceptivas; que se deixem de lado os misticismos passivos, que em nada resultam, colocando acima de tudo o conhecimento das leis regentes e o reconhecimento de que em Deus não prevalecem as manobras que se fazem em nome da fé. Porque o sentimento passivo de uns é sempre campo de exploração para outros; e, assim, enquanto duas partes cometem faltas, a conseqüência geral é a imoralidade do ambiente humano.
Se tiver de falar no extrato, na súmula doutrinária, devo dizer que transformo as bases do Velho e do Novo Testamento em uma única chave; porque enquanto no Velho Testamento ressalta a Lei de Deus, que manda adorar a Deus em Verdade e Justiça, tendo como elemento intrínseco informativo a Revelação, também o Novo Testamento ordena amar a Deus com todas as forças do cérebro e do coração, tendo por encimação final o Batismo de Espírito, a Revelação para toda a carne.
Que há, pois, de mais ou de menos entre os dois, sem ser que antes havia Revelação para um pequeno grupo, enquanto depois passou a haver Revelação para toda a carne? Se tomarmos, como de fato devemos tomar a Jesus como tendo sido a Lei viva, não é certo que assim mesmo a base Moral é a mesma Lei? E tudo não fica, de novo, nas bases da Lei e da Revelação?
Considerando, também, que a corrupção surgida em Roma desvirtuou o Cristianismo, e que o Espiritismo lhe é a restauração predita pelo Cristo, não temos de novo as mesmas bases, a Moral da Lei e os informes da Revelação, formando o eixo a mover todo o mecanismo doutrinário?
E se formos por aí, seguindo a trilha justa, não iremos encontrar o espírito postado em frente ao dever único, que é se tornar moralizado segundo a Lei e sábio através da Revelação? A síntese não fica sendo Amor e Sabedoria?
Havendo, conseqüentemente, que fazer um simples exercício analítico, não iremos encontrar as clerezias, as vestes fingidas, os simulacros, os dogmas, os rituais, tudo isso que é exterior e formal, como entraves ao progresso das almas? Não é certo que, enquanto olham para fora, e fazem ginásticas idólatras, e sustentam legiões de homens e mulheres parasitas, esquecem os graves problemas de consciência? Em que coisas depositam fé? Em que aplicam a esperança? Ao que fica a caridade reduzida?
Já disse um grande pensador, de séculos atrás, que quando a idolatria toma conta do homem, o homem se esquece da fraternidade; nada mais justo, pois o vício da idolatria enceguece mais do que a miopia, embrutece mais do que a ignorância e degrada mais do que os vícios do álcool e do jogo. Porque enquanto alguns outros vícios ferem a criatura de fora para dentro, a idolatria aniquila-o de dentro para fora! Ou se adora em Espírito e Verdade, ou se faz obra de mentiroso, eis a Lei!
áudio e texto