Velhas Amizades
Tendo acompanhado Lourdes à sua residência, que se convertera em nossa, vim a travar conhecimento e a trocar amizades, com seus pais e demais parentes. Um jovem, também, enamorado de Lourdes, tecia o romance de sua vida, freqüentando a casa, preparando-se para novos ingressos no plano físico da vida, onde seus sonhos haviam de merecer as bênçãos superiores.
E como o Consolador prosseguia, nos dois planos, a engendrar a unificação religiosa, tinham eles por função, por dever de trabalho, atender ao apelo de parentes do mundo carnal, que, por necessidade, haviam procurado o Espiritismo. O rebate atingira ao plano devido. Suas preces foram ouvidas. E as autoridades cumpriram seus deveres, enviando meios e possibilidades de trabalho, havendo procurado, dentro do elemento inteligente, seres afins, criaturas entre si ligadas por profundos liames históricos, morais e intelectuais.
Ao primeiro contato, pois, fui posto a par de tudo, em linhas gerais. E aquele homem venerando, que na última passagem pela terra fizera o papel de pai de Lourdes, disse-me:
– O que você não fez intelectualmente, distribuindo dádivas informativas durante a sua última vida, fá-lo-á agora, com trabalhos práticos através exercícios por vezes duros. Todo caso, como há sempre o tom natural, em tudo e para tudo na vida, aqui ou onde for, para este ou para o fim que seja, creio que, com um pouco de simplicidade, tudo fará bem.
E quando ao dia seguinte, pela manhã, acordei, tive um sonho fantástico para contar. É certo que o senhor Rogério sorria inteligentemente, assim como quem já está a par de tudo. Calei-me, é claro, vendo-o assim, bem como a todos os mais, todos, quem mais e quem menos, cientes do que havia ocorrido.
– Diga, diga, Alonso; que é do seu relato que faremos um apanhado do seu estado de alma e de sua disposição anímica, para com certos deveres por executar.
Tendo ouvido o senhor Rogério assim dizer, falei:
– Foi um sonho maravilhoso, sem dúvida, embora, por vezes pontilhado de acontecimentos esquisitos e sofríveis. Lembro-me bem de ter sido procurado por um homem robusto, muito alto, rosto alegre, olhar profundamente penetrante e voz de um tom regularmente grave, ungida de paternal assento nas inflexões. Este homem me disse:
– Vamos dar um passeio pela sua história? Há muita coisa interessante para você saber.
E eu lhe respondi afirmativamente, dado que todo ele era amigo:
– Vamos... Mas, fará o senhor isso? Teremos de ler muita coisa?...
– Não – disse ele, sorrindo e acrescentando:
– Muito mais do que nós sabe Deus, não acha?
– Sim, sem dúvida. – respondi – Todavia, não convém confundir o que sabe e o que pode Deus, com o que sabemos e o que podemos nós. Quando muito, senhor, o que podemos e devemos fazer é confiar em Deus...
– Meus princípios são outros, caro senhor Alonso...
– Conhece-me?...
– Sim; mas prefiro tratar dos princípios a tratar de qualquer de nós. Pelos princípios poderemos atingir a humanidade, muito mais facilmente do que procurando fazê-lo por intermédio de uma pessoa, seja ela quem for. E assim sendo, amigo Alonso, viver confiando em Deus é prova de malbaratar a vida. Isso não é coisa que se pense e faça, pois, quer Deus que saibamos tanto, a ponto de servirmos de canais ou filtros de Sua infinidade, em todos os sentidos.
Enquanto ele falava, coisas estranhas se passavam, pois o ambiente modificava-se constantemente. E ele prosseguia:
– Os espíritos chefes, das galáxias e dos sistemas, dos planetas e dos povos dos infindos mundos, não são aqueles que apenas vivem confiando em Deus. São aqueles que lutaram, que lutam, por mais conhecimentos e aprimoramentos de toda ordem. Confiar em Deus é qualquer coisa que pesa na balança das virtudes positivas, mas não é tudo. O tudo é um conjunto de fatores. Portanto, amigo Alonso, o que nos cumpre é confiar trabalhando, investigando, progredindo sempre.
E num dado momento, havendo atingido um lugar solitário, ermo, desértico, tivemos também um mar pela frente. E eu lhe disse, pasmo:
– Mas, amigo, isto não parece a Terra física?!... Esta atmosfera grosseira e neblinada...
– Pois é isso mesmo! E que tem isso?... – fez ele, encolhendo os largos ombros.
– Nada, de certo modo... Mas, eu não sei como viemos parar aqui... Nada percebi sobre o caminho...
– Isso – observou ele – pouco importa; pode-se vir por variantes caminhos e por diversos meios e modos. O essencial é vir-se bem, sempre que se queira ou possa.
– Que continente é este?
– Ásia. A pátria material do Divino Mestre.
– Para que fim aqui viemos, se me permite perguntar?
– Já o proibi perguntar o que queira? – disse ele, num tom humilde.
– Não... Mas este sonho não me está agradando muito... – ponderei, consciente que era de minha condição de ser extra-corpóreo, embora meu corpo fosse o de um desencarnado, um corpo perispirital.
– Sabe que está sonhando?!... – disse ele, muito surpreso.
– Para mim, senhor, tenho inteira certeza que deixei um corpo no leito, lá naquele lugar do astral, de onde o senhor me tirou – respondi, mais do que convicto.
– Então – disse o homem – vamos para a nossa região, de volta e sem perda de tempo, porque temos muito que fazer. Siga-me, por favor.
E não precisava ter pedido por favor, por duas razões: uma, que eu queria mesmo voltar; duas, que ele exerceu sobre mim um tal poder, que, quisesse ou não quisesse, teria de segui-lo. E num piscar d’olhos, entrava triunfal na região de onde tinha saído. E como me sentisse livre, superior, mais penetrante e lúcido, achei oportuno dizer-lhe:
– Gostaria de ficar sempre assim... Não seria possível?
– Agora, meu amigo, nada sei disso; não por impossibilidade, e sim por via dos seus merecimentos, isto é, do que lhe toque de fato por turno. Como sabe, os nossos corpos podem ser dos mais aos menos grosseiros. E embora haja meios vários para alcançar isso, o processo é um só: retificação. Milagres não existem na Obra Divina, e, por isso, leis regem tudo para todos os fins. Terá de retomar o seu corpo perispirital mais denso, tudo fazendo por sublimá-lo, através de obras dignificantes, de testemunhos superiores.
– Concordo plenamente consigo. E vamos então ao meu corpo?...
– Não, vamos por aqui – disse, levando-me para imenso casarão, engastado no centro de um lugar solitário, rodeado apenas de lagos imensos, em cujas águas os raios lunares reverberavam deliciosamente.
E quando já no local, tendo-me apresentado a um funcionário da casa, disse:
– Este senhor, amigo Alonso, terá de fazê-lo retroceder na história, pelo menos o suficiente para torná-lo consciente de certas verdades.
– Em que sentido?! – indaguei, entre curioso e cismático.
– Apenas em visão retrospectiva. – disse ele – É um processo muito usado por nós, quando o espírito é falho ainda para disso inteirar-se por outros meios.
– Vai fazer-me dormir pela segunda vez? – perguntei, com vontade de rir, já que sabia ter deixado um corpo num leito e à minha espera.
– Não!... – respondeu ele, afável, mas parecendo ocultar alguma coisa.
– Então – disse-lhes – podem fazer como melhor julgarem. Eu só queria saber, que fim tem tudo isto. Não sei o que visam, de sorte que fico sem poder auxiliá-los, caso isso esteja em meu alcance.
– Trata-se de um nobre fim, embora comporte qualquer coisa de íntimo, de particularmente interessante para si. Isto quer dizer, caro Alonso, que deve querer submeter-se à prova, por duas razões superiores: uma de ordem afetiva, a outra de ordem técnica. Por uma verá alguém que lhe é caro ao coração; pela outra terá oportunidade de preencher uma lei profética do Cristo, isto é, de dar cumprimento a certo sentido do Evangelho.
– A mim?!... Eu nada fiz pelo Evangelho! – foi minha resposta.
– Fez... Uns fizeram a favor, outros fizeram contra... – emendou aquele funcionário da casa – E o Cristo disse, que através do Consolador, todos dariam testemunho. Como o senhor não deu no mundo, da última vez que por lá transitou, terá de dar agora, que é desencarnado, por meio de lei concernente. Ficará sabendo certas coisas, e, depois, mais tarde, contá-las-á como puder.
– Bem... Como não posso servir a Deus sabendo, faço-o confiando.
– Então – disse o tal funcionário – venha comigo.
E colocou-me ante complicado aparelhamento, dizendo-me:
– Entregue-se, assim que sentir sono.
E isso foi só ele querer, para que acontecesse. E revivi toda uma vida, naquele tempo em que o Chefe Planetário viveu entre Seus irmãos menores em evolução. O que mais me chamou a atenção, porém, foi certa passagem, onde estive presente e saliente, infelizmente.
– Prodigiosa recordação! – disse o pai de Lourdes, falando pela primeira vez, depois que comecei a narrar tão estranho sonho, tão interessante experiência.
E como todos tivessem continuado, em silêncio, prossegui:
– Primeiramente, fui como que sumindo de mim mesmo. Depois, devagarinho, foi como que raiando uma linda aurora. Era um dia lindo, na Palestina daqueles dias, que jamais morrerá na lembrança dos homens terrícolas, de todos aqueles que formam na coluna demográfica do planeta, nos dois planos da vida.
E revi-me, então, vivendo uma personalidade. Reviver é o termo preciso, pois tudo ficou sendo aquela personalidade, um homem chumbado ao obscurantismo da carne. Ao meu lado, uma velhinha, curvada sob o peso de muitos anos, que eu chamava de mãe, porque o era. E a estrada, à margem da qual estávamos, distava muito da próxima cidadezinha. Tudo, em nós, era aguardar a passagem do Profeta, para que minhas chagas fossem curadas. Triste, muito triste, era o meu estado. Revoltava-me o medo que tinham de mim. Isso me era, parecia-me, pior do que a lepra.
Ao cabo de horas sem fim, lá ao longe, nos confins da estrada, pontilhou uma nuvenzinha de pó, que se foi avolumando. O vento arrastava o pó para a frente, e isso queria dizer que vinha vindo o Homem, seguido de sua multidão de seguidores. Tudo, enfim, naqueles dias, era fervor para com o Profeta ou contra o Profeta. E a turba devia ser constituída de tais elementos em promiscuidade.
Depois de horas mais, porque o Profeta se detinha em casos múltiplos, tudo se foi tornando mais visível. O próprio vento parecia ter mudado de rumo. E ao chegar-se a turba, vinha o Profeta à sua frente, simples, sereno, como que sem se aperceber de tanto barulho que Lhe ia em redor. Nunca vi tanta gente e em tal estado de exaltação, uns teimando que sim, outros que não, e o Homem, motivo de tudo isso, sem disso fazer conta. Até parece que Ele não existia para o que de superficial havia em Sua ação, e que era ao que o povo dava atenção.
Quando chegou a minha vez, tão sonhada e tão sofregamente aguardada, fiquei como que absorto, pasmo, aéreo, ante a visão de tão possante personalidade. E como sinto, hoje, piedade daqueles que apregoam não ter existido o Cristo, de ser Ele uma invenção de literatos. Era um homem de mediana estatura, muito belo, de fisionomia perfeita, onde os traços israelitas se patenteavam, em suas mais belas expressões. Cabelos longos, repartidos como os usavam os da seita nazirena, e a barba em igual molde, castanhos, escuros de cor, levemente ondulados.
No olhar parecia trazer toda a doçura dos céus de onde devia provir. E a cor de Sua túnica era igual a dos nazirenos, dos remanescentes do profetismo hebreu, distintivo de um de seus graus, o máximo. Aliás, disto todos eram cientes: que o Profeta era mais um vulto nazireno. E os Seus pés, naquele dia, estavam apenas descalços. Nada tinha para protegê-los contra o caminho arenoso e escaldante.
Quando chegou a hora de falar, falou com um profundo assento de piedade na voz, dizendo a minha mãe:
– Mulher, o apedrejado de ontem é o teu filho de hoje. Ontem, nos dias de Moisés, apedrejaste a um irmão, pecador é certo, mas sempre digno de ensino e de piedade; hoje, esse mesmo pecador é teu filho, e tu choras como mãe, aquela dor que como irmã não foste capaz de chorar, por incapaz de compreender.
A minha mãe lhe quis falar, mas não pôde; ajoelhou-se e gemeu qualquer coisa para mim indiscernível. O Profeta levantou-se, auxiliado por dois de Seus discípulos, um muito velho, o outro muito moço. Depois, tornou a falar, olhando para algumas mulheres que O rodeavam:
– A dor é sempre proporcional ao erro. Os tempos passam, modifica-se o panorama, mas a responsabilidade nunca cessa, porque o amor gera a paz, e o ódio gera a dor. Mães dos homens, ensinai-lhes retos caminhos, para que a saúde e a paz possam embelezar a vida. Deus não vos quer de joelhos; isso é dos homens. Deus o que de vós deseja é o amor, é compreensão das finalidades da vida. E quem, mais do que vós, mães dos homens, pode ensinar esse evangelho salvador? Dai, portanto, a vossos filhos, o alimento eterno que é o pão do espírito; sem amor, não se pode nem se deve viver.
Cessou Sua palavra simples; olhou-me e falou, de novo, ordenando-me:
– Esquecerás tua doença; mas não te esqueças de anunciar o reino de Deus, que deve ser estabelecido no coração dos homens, Seus filhos.
E rompeu por entre a multidão, que abriu alas. Um homem, muito fino de trato, chegou-se a mim e me disse:
– Melhor te fora morrer leproso com Deus, do que curar-te por instância de Belzebu! Esse homem é servo de Lúcifer! Renega-o! Renega-o!
Minha mãe lhe disse coisa em contrário; e o homem lhe respondeu, cuspindo-lhe no rosto:
– Miserável! Que esperaria Deus, de ti?!...
Quis revidar, quis bater-lhe, mas não pude levantar-me. O homem se foi, depois de tudo, fazendo alarde contra o Messias. Quando minha mãe pôde refazer-se e levantar-se, veio apanhar-me pelo braço para ajudar-me a ficar em pé. Não foi preciso, porque estranho poder me suspendeu. Minha mãe sorriu, como fazia muito tempo eu não a via fazer. Que dia maravilhoso! Que sorte ter sido leproso, cheguei a pensar, só para poder ter tido aquele feliz encontro.
– E depois? – perguntou Lourdes, fleumática, certa, parecia-me, do que lhe iria eu relatar.
De minha parte, uma nuvem sombreou-me a alma, negra como negros foram meus agires, quando de mim o Cristo esperaria recompensa moral. Tudo me fora dado para que me convertesse num pregoeiro das coisas do céu, que pelo Cristo se vazavam para os homens, e que, por influência Dele, a outros fossem transferidos os deveres de anunciação. Nada fiz, bem de medo dos reacionários, não porém, por falta da justeza de tão divinos bens, de suas sagradas origens. Por isso, lhes disse:
– Esqueci do mal, consoante a promessa do Senhor; temendo, porém, a avalanche contrária, nada fiz de útil. Nem fiz por recompensa moral, nem fiz por simples respeito à melhor verdade conhecida. Nem fiz por prudência, nem fiz por piedade dos homens ou de mim mesmo. Fui um fracasso completo!
– E na hora da crucificação? – perguntou-me o pai dela, simplesmente.
– Naquela manhã – prossegui – alguns homens do povo e dois de Seus discípulos procuraram-me, buscando formar um número ponderável de testemunhos em favor do Profeta, para, com isso, contrabalançar com os aliciados pelos padres, que reclamavam o martírio do Mestre, na cruz, como réu de feitiçaria e inimigo do Estado. Eu lhes respondi que não, alegando a agonia de minha mãe.
– E depois? – tornou o venerando velhote.
– Depois fui ver, de longe, o tremendo ato. Não suportei o guante de um remorso cruel. Parecia-me, ou era mesmo, em parte, minha a culpa daquele ato que pesaria tristemente, sobre a humanidade, como delito moral por resgatar. E não sei se era ou não, mas, de uns trezentos metros de distância, parece que o Profeta me reconhecera, fazendo-me sinal negativo com a cabeça ferida e meio tombada para a frente. Talvez seja a argüição de consciência, apenas, quem me tenha feito sentir isso. Mas, o que sei é que não suportei a vergonha de mim mesmo. Corri de diante Dele, pareceu-me, por dezenas de anos a fio. De fato, como a morte não existe, deixei o corpo e prossegui correndo, correndo, como que querendo fugir de mim mesmo, já não mais Dele.
Lágrimas invadiam-me os olhos, por essas alturas. Todos sentiam minha dor, pois todos choravam comigo. No fundo, porém, sentia-me feliz. Qualquer coisa me dizia que tinha sido um bem aquilo para mim. E o venerando velhote falou, com a sua voz bem timbrada e paternal:
– Repare como uma falta acompanha ao seu autor, embora divergindo nos modos de se apresentar. Naqueles dias, Alonso, resgatava faltas graves do passado, cometidas na Índia, por via dos preconceitos de casta. E falhou no sentido prático, na hora do testemunho comum. Depois, várias vezes retornou a carne, sempre auxiliado por bons conhecimentos que lhe eram ministrados, de uma forma ou de outra. E tendo tido sabedoria, muitas vezes, nunca na prática correspondeu ao montante teórico, e, acima de tudo, à grande necessidade de retificação.
Fez uma pausa curta, e seguiu avante:
– Veja que nunca foi malvado proposital, sendo que seus erros sempre decorreram entre a negligência e a covardia, o comodismo e a fraqueza moral. Não fez o mal em seu sentido mais direto, mas não fez o bem no seu ângulo mais necessário e feliz, que é o intelecto-moral. Porque, Alonso, enquanto faltarem no espírito o saber e a execução, faltará o restante, que vale apenas como complemento. O homem rico de bens materiais, se os não souber ter, converter-se-á em miserável de tais bens; e o rico em saber, se não dispuser bem de tal riqueza, também sofrerá, como reação da lei, triste opressão de fundo espiritual, ou moral, onde o que é exterior não faz falta, mas onde o que é íntimo, míngua à falta de equilíbrio, vindo a se tornar o estado, em desesperador.
Suspirou profundamente, como que evocando tristes coisas de idos dias; depois acentuou:
– A pobreza intelecto-moral é muito mais dolorosa do que outra qualquer, eu bem o sinto... Por isso, eu mesmo pedi para que você revivesse essa vida. Saber é um bom patrimônio, para aquele que quer de fato recuperar-se.
E tive de perguntar-lhe:
– Então, senhor Rogério, foi o senhor quem me fez esse favor?
– Favor?!... – estranhou o bom do velhote – Pois se eu tenho mais dívidas para consigo do que você tem para comigo!...
Todos sorriram. Mas eu não dei crédito ao dito do bom do homem. Aquela gente toda era boa demais para deixar, quem quer, pensar em situação de inferioridade. Como tal, para fugir da situação criada, de fundo pessoal, enveredei a conversa para o setor técnico:
– Que aparelho formidável aquele, hein!...
– Qual? – perguntou-me Lourdes, sorrindo.
– Aquele da visão retrospectiva...
– Nada disso, Alonso; o aparelho, em parte, faz qualquer coisa. O tudo, porém, está no funcionário, que é um poderoso passista, além de contar com poderes de função, que lhe são outorgados, naturalmente – explicou ela, acompanhando a palavra com aqueles seus suaves e encantadores gestos.
– E como fiquei dormindo? – arrisquei a pergunta, embora disso já soubesse bem, pois um corpo, perispirital ou não, sempre pode ser deixado, isto é, substituído por outro, mais tênue, mais sublimado.
– Isso – disse ela – é uma coisa comum. Apenas, para o melhor aproveitamento técnico, procurou aquele mentor, eliminar um fator negativo, que seria o concurso da parte mais grosseira do seu corpo. Disposto de um corpo mais tênue, ou da gama mais sublimada possível em si, dado o seu estado psíquico, conseguiu agir mais à vontade. Isso concorreu, também, para a sua melhor recordação.
– Tenho disso algumas noções. – foi minha resposta – E agradeço a todos o que por mim fizeram... Deus lhes pague.
– Aceitamos os seus agradecimentos – intercalou o senhor Rogério – para você ficar satisfeito. Para mim, para nós, posso afirmá-lo, a paga de Deus já vem contada na possibilidade de servir ao próximo.
Mas, um pensamento tumultuava-me o ser, na sua mais íntima afetividade. Quem seria, onde estaria, aquela velhinha extremosa, que fora então minha mãe?
– Eu sou ela!... – veio dizer-me Lourdes, abraçando-me e beijando-me na testa.
– E eu sou aquele mesmo cuspidor sem vergonha e cruel, lembra-se? – falou o venerando velhinho – Você quis bater-me e não pôde, com certeza porque o Profeta, prevendo, não o deixou livre prontamente, imediatamente. Aqui estou, diante de si, leproso de antanho, pedindo-lhe todos os perdões do mundo!...
Eu nem sabia o que pensar; mas me sentia tão devedor perante aquela gente toda, que, num momento, por falta de razão esclarecida para saber, senti, senti profundamente, o quão perfeita é a Justiça Divina, em seu tremendo mecanismo. O que me fazia pensar muito, sem dúvida, era o fato de estar aquele grande culpado, aquele homem tão cruel, em tais alturas hierárquicas. E antes que eu dissesse o que me ia pela mente, ele disse:
– Não fui, em verdade, um grande malvado; fui um fanático, um meio dementado, por assédio do espírito então chamado de imundo. O meu mórbido pensar aliava-se bem com o meu assediador, atraindo-o poderosamente. Moisés era tudo, para sempre e para todos os efeitos. O mais tinha de desaparecer! Esse era o meu pensar, essa a minha lógica, assim tinha de proceder e procedia.
– Tomem esta taça de sucos! – disse uma senhora, comensal da casa, que aguardava a volta do marido, para formar de novo o seu lar.
E enquanto ela servia, arrisquei em indagar:
Que idade tem seu marido, na carne?
– Uns setenta e seis anos, creio eu... Dentro em pouco, se Deus quiser, estará entre nós...
Coisas estranhas subiram-me à razão, fazendo-me duvidar de tanta certeza. Mas a matrona não se fez esperar, dizendo bondosamente:
– É aureolado já no mundo, meu filho... E a luz do espírito nunca se trai...
– É algum espiritualista batalhador?
– Sim; é um pentecostista regularmente esclarecido, mas fortemente ungido de amor cristão pelo próximo em geral. Quando abraçou o pentecostismo, disse-me com inteligência:
– Nada sei das coisas profundas de Deus; nada consigo entender sobre as divergências religiosas; mas sei que Jesus Cristo mandou amar ao próximo, sem falar em credos ou religiões. A religião do Cristo era um misto de Amar e Saber. E como sei pouco, quero tratar de amar, o mais possível. Por fim, Dalva, a Justiça que medirá aos sábios, ela mesma medirá, também, a mim que sou ignorante.
– Sabe confiar... – falei-lhe, quase impensadamente.
– Mas trabalhando! – acrescentou ela, prontamente.
– Exatamente! – remendei, subitamente.
Extraído do Livro:- REENCONTRO NO CÉU
Boletins do Princípio Sagrado, Deus ou Pai Divino
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