NOUTRA
REGIÃO
Dentro
em pouco, ao cair da noite, que ali beleza alguma tinha, pois a
poesia entregava todos os pontos ao trágico, fui procurando por um
auxiliar do chefe. É que o mensageiro ia sair, conduzindo-me. Já
havia posto uma dedicatória em um exemplar de “O Novo Testamento”,
para deixá-lo como lembrança a Simão. Isso feito, todas as
despedidas, que bem sentidas foram, em vista de forjadas, no cadinho
da dor, as amizades, partimos por volição, graças ao mensageiro.
– Eis
a cidade! – disse-me o rapaz, apontando para baixo e mostrando-me
uma cidade de umas seiscentas mil almas, mais ou menos, que
apresentava aspecto bem mais consolador do que o lugar de onde vinha
eu.
– Pelo
que vejo, por ser noite, parece ser uma cidade de gente feliz... Ao
menos, meu amigo, diviso horizontes montanhosos e poéticos, para
além do casario que se espraia rareante.
– Vamos
descer? – disse ele, parecendo não atender ao meu apelo íntimo,
que era encontrar um pouco de pão artístico para a fome do
espírito, um tanto recalcada.
E
numa fração de segundo, talvez, já estávamos à soleira de uma
porta, sendo recebidos por doce voz feminina, partida de uma senhora
que abraçara o rapaz, chamando-o filho.
– Este
é o amigo Janeiro, de quem já lhe falei, mamãe. Terá pousada em
nossa casa, até que queira deixá-la, por seu gosto.
E
como me tivesse apresentado, sabendo eu que era sua mãe, fiquei tão
encantado com a situação e as circunstâncias, que, nem jeito tive
para falar aquilo que é preciso. Tendo ela notado isso, apanhou-me
pela mão direita e disse-me, com um profundo sentido maternal na
voz, essa voz de mãe, que eu de tanto não ouvia:
– Seu
Janeiro, amigos de meu filho, meus filhos são. Venha conhecer mais
uns irmãos e mais algumas irmãs.
E
apresentou-me a mais de umas vinte pessoas, todas jovens, mui alegres
e esperançosas, que em torno a mim sorriam, cada qual mais se
interessando por meus mais comezinhos interesses, numa demonstração
de cordial fraternismo. E como eu estranhasse uma filharada tal, a
dona da casa explicou-se:
– Meu
caro Janeiro, são quase todos filhos adotivos. No mundo, perdi todos
os meus e, como julgava e julgo ser a vida uma obrigação social em
si, e de não curtas longitudes morais, procurei tomar filhos alheios
para criar. Os vivos andam por lá... Os mortos estão aqui... Outros
medram em planos superiores... Nos baixos ninguém tenho, graças a
Deus.
E
os seus filhos, julguei, seriam da última encarnação? Se tinha
perdido a todos... E assim imaginava, quando ela enveredou a palavra
para o terreno próprio, sondando minhas íntimas inquirições:
– E
os filhos são de vida anterior na carne, é isso mesmo. Seu Janeiro,
ninguém tem filhos no mundo, senão irmãos que de fato necessitam
de amparo. A constituição familiar é o marco zero da iniciação
coletiva no indivíduo, como princípio de educação social. A
terra vai enveredar para plano superior e, ai daquele que se não
compenetrar de tais verdades.
Eu
antevia naquela mulher uma profetiza? Não sei dizer. Só sei que de
tão poucos minutos conhecidos, ela me passava à retentiva, informes
sublimes. E como aquela moçarada estava atenta a ouvir, fiquei
calado, também, para colher mais algumas palavras. E Mariana
prosseguiu, numa tal convicção, que, creio, passaria a certeza de
suas afirmativas, até a uma pedra:
– A
falsa educação do mundo vai ter o seu fim, na conquista de
conhecimentos mais nobres por parte dos homens. O ciclo amplia-se, e,
cada qual irá se compenetrando da obrigação de ampliar suas
solicitudes ao gênero humano. Os jacobinismos terão que ceder lugar
ao mais intenso espírito fraternista. Os exclusivismos são
sinônimos de miserabilismo. E é no seio da família que o homem
aprende a ser egoísta, invejoso, falso, despeitado, rancoroso, tudo
por falta de uma melhor educação, sobre as origens, o plano e as
finalidades da vida.
Eu
estava boquiaberto, francamente surpreso. Aquela mulher avançava
para um campo, ante o qual se curvaria a coragem de muitos ditos
educadores, figurões de todos os naipes, inclusive a grande maioria
de instrutores religiosos. E ela foi dizendo, firme e simplesmente,
os olhos brilhando sob a chama de uma elevada e estranha inspiração:
– É
da vontade do Cristo, neste dealbar de um novo ciclo, que se passe ao
homem de qualquer ângulo planetário, o informe de melhor
comportamento. O laço consangüíneo deve ser encarado como
subordinado ao espiritual. O que até aqui se tem feito é negar o
espírito em face da matéria. E como sem amor espiritual é
impossível exercitar bem outros sentidos do amor, eis que a família
ficou sendo um reduto de instruções criminosas.
Parou
um momento; olhou significativamente para os jovens todos que a
circundavam; e continuou, dando à voz um timbre profundamente grave:
– Quantas
famílias no mundo o são à base de verdadeira compreensão? Que
exemplos dão os seus elementos componenciais? E muitas vezes, por
quais injunções premidos? Quantas vezes o convencionalismo social
não trucida o verdadeiro sentido da comunhão familiar? Em que grau
de porcentagem a família é o berço da verdadeira educação
social? Não é certo que o instituto da família, que deveria ser o
ponto de partida do amor universal, torna-se na maior parte das vezes
o propagador dos ideais mais criminosos?
Aquela
mulher devia saber alguma ou muita coisa sobre mim. Ela estava
entrando por um terreno que me era diretamente íntimo. Eu tinha
recebido de meu pai muitas instruções negativistas, bem assim como
as tinha passado à frente. E do resultado nada tinha a duvidar. E
Mariana prosseguiu, concluindo:
– A
Lei do amor é acima de tudo. Não respeita barreiras convencionais.
E se esta Lei fosse vivida, os pais, os filhos etc. seriam entre si
amigos e não algozes. Como, porém, o erro surge da ignorância, eis
que o programa é orientar do melhor modo. E nós que trabalhamos
junto dos irmãos encarnados, por meio do Consolador manifesto,
devemos respeitar nossas oportunidades.
Sorriu
e emendou:
– Estou
com o meu discurso, estragando vosso divertimento... Vão tocar, que
a música sublimiza o caráter.
E
olhando para mim, disse com bondade:
– Janeiro,
nós teríamos de nos encontrar um dia...
Mandou-me
sentar em um sofá, sentou-se ao meu lado e prosseguiu:
– No
curso do movimentar infinito, os fatores encarregam-se de aproximar
os elementos. As forças cósmicas, os mundos, as pedras, os
homens... Entre nós há muita coisa em comum; mas prefiro que
primeiro vá encontrar a seu pai...
Um
arrepio me perpassou pelo corpo todo ao ouvi-la dizer assim. De fato,
eu nada ainda havia sabido sobre meu pai, embora sempre o julgasse em
melhores condições do que eu. Mas, verdadeiramente, como e onde
estaria? Por isso, sentindo que poderia ser franco, em vista de
Mariana externar tanto sentimento de igualdade, perguntei:
– Sabe
alguma coisa a seu respeito, senhora Mariana?
Ela
encarou-me bem, pensou por um instante e depois disse:
– Calemos
sobre isso, por hoje; amanhã poderá começar a tratar de tal
assunto. Afinal, Janeiro, o próprio amor é matemática...
Matemática e nada mais, uma vez que tudo é à base de Lei, em Deus,
com Deus e por Deus. Nenhum outro prisma existe para ser utilizado,
sendo que o dever dos filhos é compenetrar-se da Lei do Pai. Sem Lei
nada há e nem se movimenta, sem Lei o existir e o movimentar seriam
crimes, por a finalidade não ter objetivo fixo.
E
aguardou qualquer consideração de minha parte, a julgar pelo
estacato que fez e o olhar que me lançou. Por isso, senti-me na
obrigação de considerar:
– Como
forjou esse caráter tão sólido em torno de tal princípio de Lei?
– Quem,
Janeiro, espiritualmente falando sondar os escaninhos da Moral, da
Filosofia e da Matemática, assim terá que pensar, sentir e viver. E
com os suprimentos que me vieram com a desencarnação...
– Esteve
nos planos de dor?...
– Não.
A Lei do amor é a Suprema Lei. Eu não lhe disse que perdendo meus
filhos procurei filhos aparentes, filhos alheios?...
– Então,
o amor de Deus a recompensou?
– Não!
Mil vezes não! – retrucou ela, veemente.
– Não
entendo muito bem, senhora Mariana...
E
uma moça, que veio sentar-se ao meu lado, tendo ouvido o final de
minhas palavras, emendou, intervindo;
– Mamãe
Mariana, é, à vezes, difícil de ser entendida; espere, todavia,
que jamais deixou ponto por explicar.
De
fato, afirmou, explanando:
– O
mundo religioso terrícola está empanturrado de convencionalismos
ridículos. Até o presente, Janeiro, os homens fazem da Suprema Lei
um joguete dos beatismos mais repugnantes. Sem conhecer as leis,
querem explicar os fenômenos e a conseqüência lógica é o
absurdismo teologal que medra pelo mundo. Em lugar de amor
científico, cultivam o amor temor, o amor fetichista, aquilo que é
baboseira convencional, por onde cleros esfarrapados subsistem. Vão
dizendo de Deus uns tantos superlativos nauseantes; mas ficam
intimamente suspensos em face de uma calamidade telúrica, de um
terremoto, de um tufão, de uma guerra, de uma epidemia etc.
Sem
dúvida, o amor humano para com Deus, sempre se me afigurou como de
fundo supersticioso, fetichista, quase hipócrita. Noventa por cento
das recomendações religiosistas do mundo, giram em torno ainda do
aplacamento da ira de Deus, embora em moldes mais suaves. Todos,
quase, querem comprar a Justiça Divina por meio de oferendas e
propinas. A própria oração, que é a utilização do poder mental
radiante, força tremenda mas relativa, tal como tudo no que se diz
relativo, é utilizada com fins utilitaristas, imediatistas,
individuais. Por tal razão, estava ouvindo com prazer uma tal
dissertação, principalmente partida de uma mulher, que por questão
de sensibilidades e recalques religiosistas, quase sempre pensa como
determinam os conchavismos clericais, e não como o bom senso
indicaria, isto é, segundo o produto da melhor sondagem, quer por
razões morais, quer filosóficas, quer científicas. E Mariana foi
seguindo:
– Tudo
tem explicação lógica. Nada sendo sem Lei, na sondagem por meio de
leis é que está a chave de tudo. No entanto, fanáticos uns,
medrosos outros, animalizados outros, vivemos sempre adorando através
do erro, do crime, as bajulações mais repugnantes. Poucos pensam
usar o Amor e a Ciência, a Moral e a Filosofia, como instrumentos de
respeito, que outra coisa Deus não quer; mas, cada qual e cada
credo, vai inventando balangandãs e bugigangas, à custa dos quais
pretende surrupiar à Divina Lei, o direito de ser Justa, a sua
condição de integridade, sem altos e nem baixos.
Depois
de silenciar por um pouco, afirmou que nada mais diria em tal
sentido, depois de sentenciar:
– O
modo de cultivo religioso deveria ser o do Cristo. Depois de ter a
Revelação ostensiva por evolução, coisa que é em vista de lei e
não de favor ou desaforo da parte de Deus, viver moral e
cientificamente do modo mais franco possível, quer para com Deus,
quer para com o próximo, e, acima de tudo para consigo mesmo. Sim,
pois quem é traidor para consigo, como vai ser fiel aos outros? Ou,
quem poderá dar o que não tem?
Pôs-se
de pé para receber uma outra jovem que chegava, tendo eu ficado com
a que estava ao meu lado. E foi ela quem disse o seu nome, travando
comigo um diálogo.
– Chamo-me
Flora, senhor Janeiro. Gostaria de saber qualquer coisa sobre seus
interesses próximos, se lhe não for molesto adiantar-me alguma
coisa. Trabalho em um Centro Espírita na crosta e, sempre colho
elementos na própria vida, com que ilustro as fracas palestras que
posso manter com os irmãos da carne.
Sendo
discípula de mamãe Mariana, muito de interessante deve ter para
contar aos amigos da carne. Ela é rigorosa em seus conceitos ao
tratar das leis fundamentais que regem a vida.
– Quem
a fez assim foi o próprio viver. Em outros tempos viveu com quem
falava muito em Deus, no amor a Deus, na Misericórdia Divina,
enquanto agia como bem entendia. A Justiça Divina colheu-os a todos
em suas malhas integrais, pois a bajulação não encontra nela ecos.
Ela procura saber e sentir Deus, por si mesma, como melhor pode,
tirando proveito das lições da vida. Os preceptores daqui convidam
sempre nesse sentido, pois cada qual tem em si de Deus, tudo quanto
os outros possam ter. E não confundem o dever humano de ensinar
sempre o melhor, sem se arrogar o direito, aliás estúpido, de
converter, salvar ou condenar a quem quer. Nós bem sabemos que é
por lei natural que cada qual chega a ter o que busca, sem ser
preciso que segundos por ele isso façam. Aqui, senhor Janeiro, o
Evangelho de fora é medíocre e o de dentro é sagrado... Qualquer
um sabe que aquele sofreu corrupções, sendo que o interno, embora
estando por ser desperto, não sofrerá jamais uma tal lesão. O
Evangelho interno é Deus em nós... Precisamos aprender a manifestar
o brilho de Deus, de dentro para fora... Eis porque, nesta região,
não há clerezia e nem templos, como em outras principalmente nas
inferiores.
– Onde
oram?
– A
comissão anuncia um lugar qualquer, sendo que o povo vai se quer ir.
Em todo e qualquer lugar é lugar, pois a comissão é constituída
de homens trabalhadores e sem preconceitos.
– Mas
há uma comissão?
– Sim,
senhor; mas é rotativa. Cada seis meses trocam-se os elementos
constitutivos da mesma.
– De
que forma procedem?
– Tudo
é questão de Essência e Forma. Sendo Deus Essência, em Essência
se O adora, sendo que em Forma, estudamos Suas manifestações.
Ninguém formula por estas plagas um gesto físico, ou um cerimonial,
pensando com isso ser útil a Deus.
– A
irmã falou útil propositadamente ou como modo de dizer?
– Lei
é Deus, Lei somos nós, e como o adoraríamos melhor? Não creio vá
imaginar precise Deus de nossos beatismos formais. Somos manifestação
divina e, precisamente por via disso, queremos ir nos integrando em
Ela. As reuniões têm por objetivo facilitar o exercício
aproximativo entre Deus e nós, por meio de nossas forças próprias,
que são o ser, o pensar, o querer, o sentir e o agir. Nesta região,
é bom o saiba, medram os elementos que foram mui burlados pelos
formalismos clericais; era-lhes fácil deixar um irmão morrer na
forma, contanto que pudessem oferecer nos templos, um formalismo
caro. Entre dar um pedaço de pão ao semelhante e acender uma vela
cara num altar, preferiam dar a vela cara ao altar. E o resultado foi
uma romagem pelos países tenebrosos, por dezenas de anos. Agora,
senhor Janeiro, Deus é para todos nós, Essência e não
formalidade.
– Quem
dirige a reunião religiosa?
– Qualquer
cidadão escolhido no momento. Às vezes até uma menina ou um
menino. É tão fácil, pois tudo consiste em pedir para orar.
Depois, um conjunto coral canta hinos belos, sendo bem acompanhado
por ótimos instrumentistas. Depois, de novo, fecha-se com oração a
reunião; mas oração feita em silêncio, cada qual a seu modo e
gosto. Isto, porque sabemos que tudo é, ainda, segundo modo e gosto.
O essencial é a pureza de intenção, da parte de cada um.
– E
os estudos?
– Para
isso, senhor Janeiro, temos conferências, rádio, imprensa. Cada
qual escreve, fala, prega, estuda, assimila, ensina, sem ser ninguém
obrigado a aceitar, de mão beijada, o quer que seja. Ninguém dá e
nem pede exageradamente. Deus é Pai Comum e os irmãos entre si,
tratam-se como tal. A hierarquia é espontaneamente respeitada, como
vê, por ser à base de lei natural e não por convenção de homens.
E a maior oração é o trabalho, o dever cumprido.
– Deveras...
O céu ser ganho na terra... Sábia a Lei Suprema, oferecendo aos
alunos campo experimental ao infinito, para o desdobramento dos
poderes latentes. Não fosse certos homens inventarem formalismo e
crendices, a Revelação teria ensinado muito.
– Agora,
– intercalou ela, – vão entendendo que o fito da encarnação de
Jesus foi, lançar de vez os fundamentos de uma doutrina de
intercâmbio entre os ditos vivos e os ditos mortos, para que o
CONHECIMENTO servisse de piloto ao viandante das brumas terrestres.
Em nome do Cristo, falam do BEM e tripudiam sobre a Revelação,
quando o sentido justo é pela Revelação alcançar o CONHECIMENTO e
por este o BEM.
– Esplêndido,
Flora, o seu raciocínio. Agora compreendo o significado do
Consolador prometido por Jesus, como informante celestial. Antes,
pensava apenas que a ida do Cristo à carne, tinha por objetivo
exemplificar o BEM, apenas. Agora é que vislumbro a inteligência
dos trabalhos do Cristo Planetário, que foi ir da causa para os
efeitos.
– E
nós, – acentuou Flora, – desta casa, trabalhamos todos em
Centros Espíritas. Creio que o senhor irá fazer parte da comitiva.
– Deus
o permita!
– Pois
isso terá, tenho certeza, – foi sua última palavra, por ter de
atender a um chamado de Mariana.
Em
seguida, jovens acercaram-se de mim, depois de largarem seus
instrumentos. Pouco depois, aquele mensageiro que era filho de
Mariana chegou, alegre, convidando-me a acompanhá-lo até o quarto
de dormir. Despedi-me e fui deitar, dando graças a Deus por tudo
quanto tinha ocorrido nesse dia.