PRIMEIRA PARTE
ALÉM DA
VIDA
I. Minha Vida na Terra
Quem sou não importa. Quem fui
importa menos ainda. Nós não trazemos conosco para o mundo do espírito as posições
que ocupamos na terra. Tudo isso ficou para trás, inclusive a minha importância
terrena. O valor espiritual é o que importa agora, meu bom amigo, e esse valor
está muito além do que seria ou poderia ser. É o bastante, a respeito do que sou. Quanto ao
que fui, gostaria de transmitir algumas informações sobre a minha atitude
mental, anterior ao meu passamento e entrada no mundo em que hoje vivo.
Minha vida terrena não foi
difícil, pois jamais passei privações, se bem que fosse árdua em relação aos
trabalhos de ordem mental. Nos meus primeiros anos fui atraído para a Igreja
pelo misticismo em que ela se envolve e por ter sido eu mesmo uma personalidade
mística. Os mistérios da religião expressos numa profusão de luzes, vestes e
cerimoniais, pareciam satisfazer inteiramente o meu espírito. Muitas coisas,
naturalmente, eu não entendia, mas a partir do momento em que passei para o
mundo espiritual, elas deixaram de ter importância. Eram problemas religiosos
provocados pela mente humana, e na verdade não tinham nenhuma significação no
grande esquema da vida. Mas a esse tempo, como tantos outros, eu
acreditava totalmente em tais coisas, sem um vislumbre de entendimento, e se
algum entendimento havia, era ínfimo. Ensinei e preguei segundo os textos ortodoxos,
firmando minha reputação. Quando refletia sobre uma futura existência, eu
pensava — e muito vagamente — naquilo que a Igreja me havia ensinado e que era
infinitamente pequeno e mais falso ainda. Eu não compreendia a proximidade dos
dois mundos — o meu e o vosso, — embora tivesse uma ampla demonstração disso.
As experiências que tive em ocultismo foram acontecimentos espontâneos, e, pensava
eu, provenientes de qualquer extensão de leis naturais; julguei-os antes
incidentes ocasionais, do que ocorrências normais.
O fato de ter sido um
sacerdote não me impediu de receber visitas daqueles que a Igreja preferiu
chamar demônios, se bem que jamais tivesse visto, devo confessar, qualquer
coisa que remotamente se parecesse com tal. Nunca entendi como pudesse ser e o
que era afinal, na esfera terrestre, aquilo que denominam um sensitivo, um psiquista — uma pessoa dotada de
poderes de visão, ainda que em grau limitado.
Eu considerava perturbadora
essa intromissão de faculdades psíquicas em meu ministério sacerdotal, visto
como se chocava contra as minhas idéias ortodoxas. Procurei, então,
aconselhar-me entre os meus colegas, mas eles sabiam menos ainda que eu e
apenas decidiram rezar por mim, a fim de afastar os demônios de meu caminho. Suas preces
em nada me beneficiaram, o que seria de se esperar — como agora o sei. Fossem
minhas experiências desenvolvidas em alto plano espiritual, eu teria sido considerado
um verdadeiro santo. Mas, na realidade, não foi assim, pois essas experiências
ocorriam com qualquer outro dotado dos mesmos poderes. Tratando-se, porém, de
um sacerdote da Santa Igreja, elas eram entendidas como "tentações do
demônio", tratos com o diabo e, por outro lado, como alguma forma de aberração
mental, caso ocorressem com leigos. O que os sacerdotes meus colegas não
entendiam era que tais poderes podiam ser considerados um dom — um precioso dom, segundo os compreendo agora — e de
caráter inteiramente individual, tanto no meu caso como em todos os outros, e
que rezar para que fossem removidos seria tão insensato como rezar para que se
removesse do artista o dom de tocar piano ou de pintar. Não seria apenas uma
insensatez, mas incontestàvelmente um erro, visto que esse dom de ver além do
véu celeste fora outorgado para ser exercido em favor da Humanidade. Posso pelo
menos regozijar-me de que jamais orei para que tais poderes me fossem
retirados; pelo contrário, orei para que maior luz se fizesse em meu
entendimento.
A grande barreira a quaisquer
novas investigações a respeito dessas faculdades, era, e é, a atitude da
Igreja: insensível, inflexível, estreita e ignorante. As investigações, ainda
que por caminhos longos, ainda que exaustivas, recebiam, invariavelmente, o
mesmo julgamento final: "Tais atividades têm sua origem no demônio".
E eu estava amarrado pelas leis dessa Igreja, administrando seus sacramentos,
divulgando seus ensinamentos, enquanto o mundo do espírito batia à porta de
minha própria existência, tentando mostrar--me, para que eu mesmo visse, o que não poucas vezes havia
contemplado — a nossa vida futura.
Enunciei em meus livros
muitas de minhas experiências psíquicas, torcendo porém as narrativas no
sentido da religião ortodoxa. A verdade estava lá, mas o sentido e a
finalidade foram deformados. Num trabalho mais amplo achei que devia defender a
Igreja contra os assaltos daqueles que acreditavam na sobrevivência da alma
após a morte do corpo e julgavam possível a comunicação dos espíritos. Nesse
trabalho atribuí ao demônio — contra o meu melhor julgamento — aquilo que eu
realmente conheci como sendo a atividade de leis naturais, acima e independente
de qualquer religião ortodoxa, e não de origem maligna.
Para seguir as minhas
próprias inclinações, eu teria que infligir à minha vida, uma completa
revolução, a renúncia às idéias ortodoxas, e, muito provavelmente, um grande sacrifício material,
visto que eu possuía também boa reputação como escritor. Tudo quanto já havia
escrito iria perder o seu valor, desde então, aos olhos dos leitores e além
disso eu seria olhado como um louco ou herege. Assim, deixei passar a maior
oportunidade da minha vida. Quão grande foi essa oportunidade e quão grande o
remorso dessa perda, eu fiquei sabendo ao trans-ferir-me para este mundo, cujos
habitantes já vira tantas vezes e em tão diferentes ocasiões. A verdade
estivera ao meu alcance e eu a deixei escapar. Entregara-me à Igreja, e seus
ensinamentos estavam fortemente aderidos a mim. Via que milhares de pessoas
pensavam como eu, e isto me encorajava de tal forma, que não era capaz de
pensar que tanta gente poderia estar errada. Tentei separar minha vida
religiosa das experiências psíquicas que sucediam comigo, tratando-as como dois
fatos completamente estranhos um ao outro. Era difícil, mas dirigi os
acontecimentos de tal modo que houve menor inquietação mental, e assim
prossegui até o fim, quando, então, vi-me no limiar daquele outro mundo, de que
já tinha visto manifestações. Do que sucedeu comigo ao deixar de ser um
habitante da terra, passando para o grande mundo dos espíritos, espero a seguir
dar-lhes alguns pormenores.
PARTE II - PASSAGEM PARA A VIDA ESPIRITUAL
PARTE II - PASSAGEM PARA A VIDA ESPIRITUAL
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