IX
Durante minha vida carnal, pouco mais ou menos toda
ela votada aos trabalhos espiritistas, e sei que nos
melhores moldes, bem poucos fenômenos se deram
comigo, de ordem mediúnica, dignos de melhores
atenções. Desenvolvida a faculdade falante, tudo era trabalhar com
ela, simplesmente. Vez que outra dava-se um rapto de vidência,
de longe em longe sabia-me em viagem astral; o mais tudo era
rotina, era sofrer dando passagem a certos espíritos, muitas vezes
aturando por horas a fio dores e influências desagradáveis.
Por falar em dores, por fazer referência às influências desagradáveis, devo aqui uma lembrança aos médiuns – que nenhum deixe
de trabalhar por isso; que jamais cesse um trabalho pelo temor de
sofrimento qualquer; porque a recompensa em Deus ultrapassa
os limites do concebível. Trabalhe-se, e com gosto, lenindo amarguras, enxugando lágrimas, consolando espíritos aflitos, curando
doentes do mundo astral, porque a recompensa é digna de todos
os respeitos. Sei quanto é esquivo o espírito encarnado; considero
a superfluidade dos conceitos humanos: respeito a pouca monta
das certezas terrenas; mas afirmo que convém perseverar, que
convém empatar o tempo em serviços de fraternidade mediúnica.
Para mim, empregar tempo em obras de solicitude mediúnica
valeu muito, ultrapassou o que a minha imaginação concebia. E
julgo a meu modo, segundo as dádivas que recebi – fazer o bem, de
espírito para espírito, sem mescla de interesse qualquer, é muito
mais CRISTIANISMO, é muito mais RELIGIÃO, é muito mais ÉTICA
do que viver propalando filiações igrejistas, do que viver fazendo
afirmações sectaristas, como é comum entre os homens, quase
que em geral. Bazofiar crenças e postulados místicos, gastar rompâncias hierárquicas, ter certeza das verdades eternas, tudo isso
é pouco face a face com o bom procedimento, tudo isso é quase
nada em face de um pouco de amor fraterno.
Já disse alguém, e com sobras de razão, que o mal da Humanidade é estar ela sobrecarregada de criaturas que a si mesmas se
justificam; verdadeiramente, temos sobras de santos de si mesmos. É a realidade, pois os que se julgam certos na fé que esposam,
quase sempre dão bons errados, dão com os costados no erro. O
bom senso indica no sentido de trabalhar, de aumentar em serviços
úteis ao próximo; e a deficiência espiritual concita no rumo das
afirmações sectárias, dos fanatismos religiosos, das certezas que
salvam... Mais tarde, ao somar das contas, tremenda é a desilusão,
porque a Lei queria boas obras e não excesso de falatório, e não
afeição a estatutos humanos. Afinal, quem disse que a Verdade
Suprema se guia e se comporta segundo os convencionalismos terrícolas? Por acaso, pode o homem julgar o Infinito? Então, quem
não pode acrescentar um côvado à sua estatura pode ordenar ao
que é Integral?
Não pode, é claro, e qualquer de nós consegue compreender
isso; mas é muito mais fácil ter uma religião, e discuti-la com os
amigos, do que ser bom, do que cumprir com os deveres da Humanidade. Se a Terra tivesse tantos bons, quanto tem de religiosos, de
há muito seria um paraíso! É muito fácil compreender isso, não é?
Vamos, então, ao relato do fenômeno mais interessante passado
em minha vida de encarnado, aquele que servira de guia místico
em todos os momentos de minha trabalhosa vida.
Haviam-me convidado para um trabalho espírita. Um trabalho a
mais, apenas, assim como bastantes outros que houvera feito. E lá
fomos, eu e alguns confrades, atender a uma senhora, ainda muito
jovem, acometida de mal súbito e desconhecido pelo facultativo
que a atendera.
Lá estava ela, gemendo e chorando, no seu leito, acompanhada
de seu marido e uma filhinha. Respondia coisas sem nexo, falava de
assuntos estranhos à sua vida e ao seu meio. Nada mais, portanto,
do que um caso mediúnico, do que um mal aparente. Dessas
questões tínhamos conhecimentos a valer, era do rol ordinário.
– Façamos uma sessão, levando-a para a mesa – disse Cavalheiro, que era no tempo quem presidia aos trabalhos práticos.
– É o mais indicado, pelo menos para o que se pode entender,
observando o caso pelos sintomas, apenas.
A essa minha observação, foi ela tomada por sobressaltos,
saltando do leito e ameaçando agredir-nos. Disse quantos impropérios quis e rasgou roupas à vontade, antes que se pudesse
dominar o agente que a dominava, que a controlava por completo.
Foi para a mesa, com algum custo, e ali se fez o necessário. Tudo
rotineiro, tudo comum, apenas o normal para essas ocorrências.
Uma vez elucidado o espírito, pediu para falar algumas coisas,
tendo sido barrado pelo presidente, que nunca se dera de esgara- vatar a vida, a esmiuçar particularidades alheias.
– Não – respondeu-lhe Cavalheiro – que nada temos com as
vossas questões íntimas. Feito aquilo que nos cumpre, é senhor de
suas liberdades e intimidades. Cada um de nós possui um mundo
interno que lhe é privado, e nós pensamos ser educados a ponto
de respeitar esse direito.
Deu-se, porém, a comunicação espontânea de um outro espírito,
por um dos médiuns presentes, avisando:
– Nobre é o vosso procedimento, não resta dúvida. Muitas
vezes, e sem ter essa intenção, alguns presidentes, por interrogarem muito aos espíritos recém-elucidados, fazem mal em lugar
de bem. Estes, apesar do reconhecimento de última hora, permanecem embotados, avessos por desconhecimento à nova ordem,
não podendo responder a contento de quem age em plano dife rente, muitas vezes com prevenção, revelando não usar na prática
o Evangelho de que tanto usa em palavras. Agora, para com este
irmão, faz-se necessário abrir valioso precedente, pois nada terá a
dizer de sua vida íntima, sendo que teria muito a tratar, de assunto
que a todos aqui interessa, não fosse a escassez de tempo. A Lei
vos reuniu e o caso vos diz respeito. Antes digo que, por ser de Lei,
uma vez mais vos encontrastes no curso da vida.
– Sendo assim – concordou Cavalheiro – é interessante por ser
útil.
A entidade comunicante emendou.
– Longa é a história. Ele dirá o suficiente, assim como lhe for
ditado.
Interessado, inquiriu Cavalheiro:
– Quem vai instruí-lo?
– Quem de mais alto zela pelos vossos bens. Há sempre uma
autoridade maior, até chegar a Deus, a PLENITUDE DIVINA que é
FUNDAMENTO ÍNTIMO em tudo e em todos.
– Compreendemos, então, estar presente o fator cármico, a
obrigação de atender, por ser intransferível. Agradecemos o aviso.
– Ouçam-no, portanto, que poucas são as palavras – respondeu
o enunciante.
E o recém-doutrinado falou:
– Temos tido muitas vidas, bem o sabeis; mas não podeis
detalhar, nem muito nem pouco sobre elas. O que sabeis é de
modo geral, vale apenas como tese doutrinária, por ser princípio
básico da Doutrina do Consolador. Todavia, dizem-me aqui, temos
muito em comum sobre eventos históricos; e afirmam, também,
que chegou para nós uma grande hora, um tempo de concerto
entre partes.
Demonstrou o espírito estar ouvindo alguém, para terminar:
– Tereis, em sonho, como dizeis, a revelação de alguns fatos.
Prestai a devida atenção ao que haveis de sonhar. Por ora, agradecido me despeço, afiançando meu desejo sincero de ser útil, a fim
de indultar-me perante vós e a Lei.
E se foi.
Alguns dias se passaram, cheios todos nós de anseios e expectativas. Nada acontecera, enquanto pairávamos naquela tensão
curiosa, naquele frenesi auspicioso. Também, ninguém tinha
coragem para indagar sobre a demora ou fracasso da proposta,
permanecendo numa esperança que aos poucos se desfazia, que
se esvaía em desilusão.
Certa noite, quando menos cogitava mentalmente sobre o caso,
e quando acontecimento da vida me prendia toda a atenção, pela
gravidade que assumia, pude sonhar o mais lindo sonho de minha
vida.
Eis o sonhado:
Era uma linda noite de luar. O ermo nos contagiava, fazia-nos
pensar na profundidade das leis universais. Fazia-nos, digo, porque
éramos três homens, caminhando por entre campos e bosques,
tendo a alma suspensa por indefinível temor. Chegando a uma
elevação, vimos ao longe uma cidade, muito iluminada, vibrante,
cheia de vida, alegrias e temores.
Um falou, com voz pausada e pontilhada de amargura:
– Vamos, que é Paris. Marchemos para a morte.
Minha alma pareceu gemer. Digo assim, e com razão, pois a
dor me vinha do mais profundo, dos recônditos espirituais. Eu
ignorava, até então, o que continha aquela situação e aquela frase,
parece que feita de agonia e atroz.
– Gemes por que? – inquiriu-me aquele mesmo companheiro.
– Não sei...
– Dói-te alguma coisa?
– Dói-me a alma!... Sofro do espírito!... Uma tremenda agonia
me devora!
Ele balbuciou, lugubremente:
– Previsões do espírito. Esta noite morreremos pelo Cristo, pela
Verdade.
– Esta noite?! Mas se há tanta beleza nas alturas.
O outro interveio:
– Que se pode fazer, se há tanta feiúra em certas almas? Esta é a
noite de São Bartolomeu, a noite que marcará na História uma das
piores ações por parte da Igreja que se diz do Cristo. Muito sangue
será vertido... Muito luto cobrirá aquela cidade e muitas outras...
Porque a Verdade, na Terra, para vencer, tem obrigatoriamente
necessidade de terríveis testemunhos. Pensa, por acaso, que foi
preparada pelo Cristo a Sua própria crucificação? É que nos planos
inferiores a Verdade é minoria. Se não a podem liquidar, podem
entretanto, por algum tempo, constrangê-la.
– Ainda bem... Se estamos com a Verdade...
– Por isso mesmo, voltemos. Vamos morrer com os nossos companheiros, para que não nos marque a Lei com o sinete da covardia.
O companheiro começou a brilhar, pelo que o inquiri:
– Você é por acaso um profeta? Vejo que prediz e que brilha.
Diz a Escritura, que isso acontecia com aqueles que possuíam o
Espírito de Deus.
– Muito bem, somos profetas. Por isso mesmo, volte e cinja-se
ao dever, que deve um severo resgate. Em outros tempos, por
fraqueza de espírito, delatou, traiu, fez morrer a muitos servos da
Verdade. E agora que chegou para si uma grande hora, por que
foge de novo?
Tive, no momento, como que a revelação íntima do que ocorria.
Envergonhei-me, atirei-me por terra, pedi perdão.
– Levanta-te, que és um homem! – bramiu um deles.
Levantei-me, mas conservei a cabeça baixa.
O companheiro fez-me encará-lo de frente. Estremeci, pois ele
era o retrato vivo de Wicliff. Olhei para o outro, como que forçado
por estranha influência, e reconheci-o como sendo João Huss.
Eram os paladinos da Reforma, os alicerces do Protestantismo, que
eu tinha pela frente, no momento em que fugia de Paris, quando
abandonava os companheiros da luta.
Terrivelmente constrangido, mortalmente agonizado, roguei:
– Pelo amor de Deus, ajudem-me!... Não tenho coragem!... Não
sei morrer...
Eles agora brilhavam. Não se lhes podia encarar, porque ardiam
os olhos.
Huss falou, com vigor e brandura:
– É necessário enfrentar a situação com espírito alevantado,
certo das vantagens da Verdade sobre as escabrosidades da
mentira e do erro. A Verdade é brilho, a mentira é treva. Na morte
se adquire a Vida, e na vida inferior sepultam-se as alegrias da
chamada morte. Vai, pois, e empunha o estandarte da renúncia,
que um belo testemunho darás, enquanto um grande resgate
levarás a termo.
Huss pairava no ar, cheio de esplendor espiritual, quando Wicliff
foi com ele se emparelhar.
Huss prosseguiu:
– É chegada a hora da reposição das coisas no lugar, conforme
as palavras do Divino Mestre. Para que o Pentecostes ressurja no
mundo, muito há que fazer, como preparativos necessários. Se
todos fugissem, se todos se portassem assim, como levaríamos a
cabo o Mandado Superior?
– Eu voltarei... Mas peço ajuda...
Viram meus olhos, então, o para mim inconcebível. Eles foram
subindo e o firmamento estrelado foi se abrindo, abrindo e cla reando, chegando a brilhar, ofuscando minhas vistas. Eu teimava
em olhar, vencia o brilho, sentia o prazer da vitória. Da abertura
brilhante surgiu uma multidão incontável e a música que descia
à Terra não tinha comparação em beleza e glória. Do seio da
multidão foi surgindo Jesus Cristo, que embora ensanguentado,
sorria e espargia amor e confiança. Ao chegar a nuvem gloriosa
a uma certa distância, Jesus separou-se dela, desceu mais,
apanhou os dois baluartes da Verdade pelas mãos e de novo subiu,
fazendo-os parte da gloriosa multidão. Foram sumindo nas alturas
e tudo volveu ao natural, tendo eu rumado à grande cidade, para
renunciar a vida em proveito de uma obra de resgate e testemunho verdadeiro.
Na próxima sessão, aquele espírito retornou e se disse infeliz
monarca que, inconsciente da Verdade, ordenou a terrível matança.
– Muito ainda devo, muito terei de pagar. Em futuras vidas farei
o que estais fazendo, pois fazer o bem é melhor do que sofrer o
mal feito. Haja de vossa parte, em meu favor, um pensamento de
perdão, uma prece...
Ele vinha sempre nos visitar e se anunciava “O Devedor”.
Mais tarde soube que Cavalheiro, Inocência e Alfredo foram
companheiros de agonia e morte nas mãos dos Príncipes e da
Igreja. Eles tiveram seus sonhos.
Extraído do livro: O GRANDE CISMA
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