Quando Catarina assomou à porta do quarto, onde seu marido de há muito sofria as torturas de mal incurável, sentiu passar por si alguma coisa estranha, uma espécie de gélida aragem. Como tudo estivesse fechado, sem possibilidade alguma de corrente de ar, Catarina procurou atinar com o que fosse aquilo, posto que o fenômeno fora intenso. Não encontrando explicação nas leis físicas, embrenhou a mente nas suposições espirituais, concluindo pela morte do esposo, clamando em brados alarmantes, acordando sua mãe e os dois filhinhos, que, assustados, vieram ter a ela.
Eu, seu filho mais velho, contando então dezesseis anos, acordado que estava e na cozinha, tomando a primeira refeição, a fim de rumar ao trabalho, acorri aos apelos, encontrando-a debruçada sobre meu pai, que de fato estava morto.
Seguiram-se os trâmites ordinários. Afinal, depois de todos os choques e entrechoques da opinião humana, as leis fundamentais cumprem os desígnios do Supremo Autor, endereçando as criaturas aos devidos fins. Diz velho refrão que Aquele que mais sabe mais calado fica. Realmente, enquanto as criaturas berram conceitos e preconceitos, empinando concepções e mais concepções, entre si as mais contraditórias e paradoxais, a Soberana Vontade executa Seus programas, através de leis básicas, sem ruído, sem alardes nem empavonamentos.
Meu pai sofria havia muitos anos; com isso gastamos tudo quanto fora possível, acumulando ainda algumas dívidas. A medicina havia dito, pela experiência de criteriosos esculápios, não haver recurso para o mal. Quanto ao credo por todos esposado, o Catolicismo, ele nada dissera, nem teria o que dizer, mudo e surdo, cego e materialista como era e como continua a ser. A única pessoa inquirida por minha mãe, e que lhe dissera estar tudo perdido, fora uma senhora benzedeira, muito acatada pelo povo, mas bastante atacada pelo pároco, que a tinha em conta de feiticeira.
Após a tempestade, a cruenta movimentação telúrica, tinha de vir a bonança; e a bonança veio, lenta e segura, até que terminamos por achar bem feita, a obra de Deus. Comparando as torturas e os inúteis esforços de antanho, com as pazes feitas junto às noites bem dormidas e os dias de paz e trabalho, concordamos com a Sabedoria Suprema. Foram quatro anos e meio de rotina pacífica, apenas curtindo saudades imensas, lanços de pranto, porque meu pai fora um homem bom, humanamente bom.
O exemplo que dera, durante a enfermidade, infundira profundo respeito; sua paciência parecia não ter limites! Quando alguém lhe exaltava a condição de sujeição ao mal, ele invariavelmente respondia:
– Tenho certeza de que a alma é imortal; portanto, além dos critérios humanos, acima dos recursos da medicina, pairam os desígnios de Deus. Se a morte for total, terei ganho a vantagem do homem decente, daquele que não escandaliza nem mesmo o sofrimento. E se a morte for aparente, continuando a viver o espírito, então receberei de Deus a recompensa de filho obediente. Além destas cogitações, é necessário lembrar que podem existir outros motivos para a vida e suas conseqüências, motivos que eu por ora desconheço, porém motivos que não serão ignorados por Deus. Por tudo isso, basta-me ser paciente, aguardando pelo que vier, quando e como Deus o queira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário