Capítulo
III
Fui
acordado por minha irmã Vicentina, e foi bom que assim fosse, pois
ao despertar tinha a impressão de ter sonhado com ela. Isso fez que
não sentisse tanta emoção, entrando de pronto em assuntos
diferentes. E como ela desencarnara muito jovem, nada perguntou da
Terra ou de parentes. De fato, nossa família era pequena em número,
derivava de portugueses, e ninguém estava agarrado aos bens do
mundo, que não tínhamos. Foi a conversa muito feliz, porque
Vicentina se sentia num frenesi, por estar eu desencarnado e ali,
onde iria trabalhar com elas.
– Mas
a mamãe disse-me que voltará à carne, em breve, e que nos
aguardará no devido tempo, como filhos ou parentes próximos –
disse-lhe eu.
– Que
importa! Aqui temos facilidade para os reencontros. Você para aqui
se transportou muitas vezes, e muitas vezes nós fomos ao seu
encontro. E se Deus assim quer, é para o nosso próprio bem. Devemos
obedecer Sua Divina Vontade, que são leis, fora das quais ninguém
atinge as finalidades da vida.
– Mas
as separações sempre custam sofrimentos! – disse uma irmã que
estava ao lado, com visível estampa de quem sofrera algum choque
muito recente.
Vicentina
elucidou:
– O
filho dela saiu dos umbrais, foi tratado de corpo e de espírito, ou
Mente e quando ela pensava que iria ficar por aqui, foi enviado à
carne e para ser um defeituoso físico. Foi para ela um golpe
tremendo... Mas ela devia esperar por isso... O carma é quem
determina o que nos deve acontecer...
A
pobre mãe interveio, tendo filetes de lágrimas a rolar pelas faces:
– Eu
sei que a semeadura é livre e a colheita é obrigatória, como se
diz por aqui; mas é doloroso, embora saibamos os tristes porquês
determinantes.
Eu
me sentia condoído e aéreo, e foi Vicentina quem de novo falou:
– Ela
e o filho pertencem a uma família de mandatários do passado não
muito remoto. Criaram pesado carma com as violências praticadas,
sendo que ainda estão muitos em lugares tenebrosos, enquanto outros
já estão encarnados. É a Justiça Divina a se impor, para que
todos um dia saibam que a Glória e o Poder derivam do Amor e da
Sabedoria.
Deu-me
de perguntar, observando que minha irmã Vicentina era ali muito
feliz:
– E
você, Vicentina? Como se sente tão bem por aqui?
Sempre
expansiva, respondeu:
– Sou
um espírito relativamente novo, não sou uma devedora, compreende?
Esta região, para mim, é o meu Reino do Céu. Não representa
efeito de culpa, não é instituto correcional, como o é para
muitíssimos outros.
E
encarando-me bem, embora com certa tristeza, disse-me:
– Para
você, por exemplo, é bem um motivo de remorsos... Devia estar bem
mais para cima, ou melhor, para fora, em regiões de mais Luz e de
mais Glória. Como andou a cometer faltas contra a Doutrina Pura, a
Doutrina do Caminho, tem falhado de novo, tem recaído nas mesmas
faltas.
– De
mamãe também ouvi certa admoestação... Tenho a impressão de ter
cometido faltas graves no passado, e de não ter aproveitado as
oportunidades que o Pai Divino concede, para que Seus filhos purguem
as faltas e subam na escala cristificadora.
Vicentina
esclareceu:
– Você
foi um dos falsificadores de manuscritos do século quarto, quando
Roma fabricou a sua Igreja, contrariando a Igreja do Caminho, se
assim se pode dizer, pois o Divino Molde deixou a Excelsa Doutrina do
Caminho, que tem por fundamento a Lei de Deus, o Seu Divino Exemplo e
o Batismo de Revelação.
Mediu
bem a minha possível reação, para depois prosseguir:
– E
depois de sofrer muito tempo nas trevas, tem reencarnado vezes a fio,
e não tem lá se saído muito grande coisa, embora tenha realizado
algo de bom, pela bondade que tem posto em prática. Entretanto, não
adianta agora ficar triste, porque outras vidas terá, tantas quantas
sejam necessárias. Trate de viver a vida e de trabalhar aqui, até
que o Pai Divino determine outras oportunidades no plano carnal. É o
melhor a fazer, e você já é bastante sabido, das coisas de Deus,
para não querer contrariá-las de novo.
– Santo
Deus! – exclamei, ressentido contra mim mesmo.
Vicentina
veio, abraçou-me com tamanho fraternal carinho, que senti um choque
violento, uma como descarga elétrica, que me sacudiu todo,
fazendo-me alertar a mente e o coração.
– Ninguém
poderá jamais se aproximar do Reino do Puro Espírito, sem deixar
para trás o reino do mundo. Lembre-se, meu irmão, que o Reino do
Espírito é antípoda ao reino da matéria. Isto poderá parecer-lhe
muito forte, de imediato, mas a realidade é que o espírito deve vir
a ser senhor e não escravo da matéria. E se quiser pensar certo,
pense bem no Cristo da Verdade, do Amor e da Virtude, pois o outro,
aquele dos religiosismos do mundo, está muitíssimo desfigurado.
– Tive
tudo – murmurei – para abraçar a Doutrina Pura!...
Vicentina
comentou:
– Sim,
o Céu deu-lhe tudo, como de outras feitas, mas os interesses
subalternos ou criados não lhe permitiram obedecer ao chamamento da
Verdade. O reino do mundo, quando a pessoa se lhe entrega, é um
vilão terrível.
Chegou
naquele instante uma senhora idosa, convidando Vicentina para um
trabalho urgente, e puxando-me pela mão, foi ela dizendo:
– Vamos
atender o irmão Adauto, que acaba de deixar a carne, também
bastante fracassado... E vá se acostumando, pois esta região é, na
quase totalidade, um reduto de fracassados de variada ordem... Ele
foi para o pavilhão dos crentes, dos protestantes, daqueles que
pensam ter lavado os pecados no sangue do Cristo, mas se esquecem, na
realidade, que se mancharam com as nódoas da ignorância de muitas
leis de Deus...
Volitamos,
por conta delas, até certo pavilhão, um imenso pavilhão, rodeado
de lagos belíssimos, a uns quilômetros, direi, do pavilhão onde eu
estivera dormindo. E ao descer ao chão, um chão muito parecido com
o da crosta, fomos logo entrando, até chegarmos a um leito, dentre
centenas de outros leitos, muito alvos, onde um irmão falava
desordenadamente em Jesus, no sangue de Jesus, na graça da salvação
de graça, tudo de permeio com soluços e rogos impressionantes.
– Adauto
– disse minha irmã – era pastor protestante, homem abastado e
benquisto. Entretanto, vem de um passado horrível, pois foi um dos
massacradores da célebre noite de São Bartolomeu. Como foi um
fanático contra, naquela ocasião, agora foi um fanático a favor. E
como a desencarnação traz a pessoa tal e qual como ela o é, eis
que aí está ele, creio que bem pouco lavado de seus pecados ou de
suas culpas do passado. E ainda que estivesse lavado, importa saber
que o problema do espírito é de autocristificação e não de
salvação de graça. Os erros humanos, ainda que bem intencionados,
quando o forem, nada representam como medidas contra as leis de Deus.
Isto devemos todos entender, para não mais andarmos a querer ensinar
a Deus, em lugar de aprender com Deus.
Dito
isto, colocou ela a mão direita sobre a cabeça do homem alterado,
olhou para mim como a convidar à oração, e entramos todos num
reverente silêncio. Como eu fechasse os olhos para orar, como de
costume, ao tê-los aberto após, quando julguei que podia fazê-lo,
vi que Vicentina estava envolta em esbranquiçada aura de luz, com um
tom verde-metálico, e que essa aura envolvia o irmão Adauto, que
aos poucos fora silenciando, até que silenciou de todo.
Andamos
e fomos parar diante de dois outros irmãos, um que gemia surdamente
e o outro que apresentava ferimento horrível na cabeça, e Vicentina
disse:
– Estes
eram ou são espíritas...
Admirado,
perguntei:
– Espíritas
também chegam assim?!...
Vicentina
sorriu, pensou um bocado e disse, indagando:
– Meu
irmão, que é que a Justiça Divina tem com os rótulos de quem quer
que seja?
– Mas
não é chave, no Espiritismo, que ele vale pela reforma moral que
causa na pessoa?
Agora
Vicentina gargalhou, tornando após a perguntar:
– Mas
quem disse que todos os que freqüentam as sessões espíritas,
ouvindo discursos, tomando passes e pedindo consultas aos médicos
espirituais, são discípulos da reforma íntima?
– Bem...
– disse eu – Eu assim pensava...
Enquanto
íamos andando, rumo a outros internados, falou Vicentina:
– Ninguém
jamais passará por cima da Lei de Deus, seja quem for, venha de onde
vier e sob pretextos quaisquer!
– Isso
é importante, minha irmã, e é pena que a Humanidade assim não
saiba e assim não pratique.
– O
Reino de Deus, como já muito ouviu falar, é uma questão de
Verdade, Amor e Virtude, que cada filho de Deus deve realizar em si
mesmo, à custa de seus esforços. Somos filhos da VERDADE TOTAL.
Dela partimos inconscientes e a Ela teremos que retornar em plenitude
de consciência. Isto é, tão esplendorosos em Luz e Glória, que
nenhum sol material, com o seu brilho ofuscante, pode sequer servir
de paralelo. E, no entanto, os comercialismos clericais e os engodos
farisaicos, inventam a falsa importância dos rituais e dos
discursozinhos histéricos, tudo isso que contraria a Lei e a Divina
Modelagem do Cristo.
E
apontando para aquelas camas, habitadas por tantos espíritos
enfermiços, recém-saídos da carne, concluiu:
– Depois
temos isso que aí está, cada qual com a sua bandeirola religiosista
e com as suas chagas, principalmente as de ordem moral, pois a matriz
dessa miséria toda é o desequilíbrio moral.
– Então
– interpus – o mundo precisa de uma renovação muito grande,
alguma coisa que o faça mudar muito e em pouco tempo, se é certo o
que dizem certas mensagens enviadas à Terra, de uma Nova Era, de
novos dias...
Vicentina,
antes que eu completasse a frase, adiantou:
– Não
é nesta região, nem em região até mesmo superior a esta, onde são
tratados esses assuntos, mas pode estar certo de que sabemos bastante
a esse respeito, porque irmãos de esferas muito superiores, falando
em nome da Administração Planetária, já nos avisaram de tudo. A
Humanidade inteira, lotada na Terra, isto é, da carne e de fora
dela, terá que se defrontar com a maior transição de toda a sua
História, para entrar após um longo período expiatório, na
segunda meia-idade, na fase de maturidade. Podemos afirmar que o
Dilúvio de Fogo previsto no Apocalipse virá, custará dores muito
prolongadas e necessárias, e após entregará à Humanidade, a parte
que herdar a Terra dos futuros ciclos, a novos e mais felizes dias.
Quanto aos cabritos, bem... Creio que já ouviu dizer que a lei das
migrações interplanetárias é comum na Ordem Cósmica...
Admirado,
perguntei:
– Nunca
pensei reencontrá-la assim tão bem esclarecida, Vicentina, onde
aprendem vocês semelhantes Verdades?
Sempre
alegre e de resposta pronta, afirmou:
– Onde
você também irá aprender, ouvindo instrutores, lendo e conversando
com seus irmãos de jornada evolutiva. E se quiser visitar, ainda
agora, o Salão dos Mapas Diagramáticos, vamos para lá.
Ainda
mais admirado, perguntei:
– Mas
já estou integrado na posse desses direitos?!...
– Represento
– avisou ela – a Direção da Região... Estou aqui por conta de
quem tudo sabe e dispõe a seu respeito, compreende?
– Nossa
adorada mãe providenciou tudo isso, pois não, Vicentina?
Ela
sorriu e esclareceu:
– Sim
e não... Lembre-se de que por aqui a Justiça Divina é tudo, sabe,
promove e impera sobre tudo! Você falhou em parte, porque não teve
a suficiente coragem para romper com o erro, em favor do que é
certo, mas nem por isso deixou de ser um homem bondoso... A sua
bondade garantiu a vinda para aqui e garante, estando aqui, o direito
de tudo quanto a região tem, pode e deve oferecer aos seus cidadãos.
– Então,
Vicentina, estou dentro do currículo pedagógico?
– Sim,
e muito me comprazo disso, porque sendo ou tendo sido sua irmã
carnal, tudo se torna mais fácil, menos formal e mais íntimo. Nisto
a nossa mãe pôde intervir perante a Direção da Região... Pediu
que fosse eu a cicerone e a Direção atendeu-a, como invariavelmente
a atende, porque ela serve muito e com elevado senso de realidade.
– Pois
eu quero visitar o Salão dos Mapas Diagramáticos, mas, antes disso,
desejaria fazer uma pergunta...
– Não
perca tempo, pergunte sempre, desde que a pergunta constitua desejo
de aprendizado.
– Se
a nossa mãe é um espírito que merece esferas superiores, e aqui
funciona por vontade própria, para conseguir evoluir mais depressa,
o que se passa com o Diretor da Região?
Vicentina
encarou-me com agudeza, indagando:
– Ora,
então não sabe que as Direções Superiores, ou com mais amplidão
coletiva, sempre são exercitadas por espíritos de muito mais ampla
evolução? Cumpre lembrar sempre, Bento, a elevação moral e a
capacidade técnica, pois estão muito longe ainda os Planos
Divinizados, próximos do Plano Crístico, onde somente o Amor é a
lei regente de modo absoluto.
Muito
mais interessado, pelo que ouvira, indaguei:
– Por
que, nos Planos Divinizados e no Crístico imperam o Amor, de modo
absoluto, sem outras necessidades?
Vicentina
explicou-me:
– Conforme
irá ver no mapa diagramático, tudo é questão de leis de meio,
elementos e fatos. Ora, na crosta a matéria é naquela densidade,
aqui é nesta densidade, nos planos melhores vai sendo muito mais
quintessenciada, e nos Planos Divinizados é de uma eterização
deslumbrantíssima, pode-se dizer que é Luz Divina adensada. E sendo
assim, quem por lá viver é Amor para todos os efeitos, não
precisando estar às voltas com técnicas e formas, como nestes
planos ainda inferiores e nos mundos físicos.
– Que
maravilhosa a Emanação de Deus! – exclamei, satisfeito – Como
desejaria ver já o Salão dos Mapas Diagramáticos.
Vicentina
apanhou-me pela mão e disse:
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