UMA PONTE SOBRE UM ABISMO
Às sete em ponto estávamos na
residência de Mesquita, onde Cristina e Vicente aguardavam para
tomarem parte na visita aos encarnados. Cristina, sua esposa, e
Vicente, seu filho, sabiam de nós apenas de nome. E cumularam-nos de
gentilezas. Dentro de minutos, Mesquita chegava, avisando que um
carro nos viria buscar, em poucos minutos.
— Iremos de carro? — disse-lhe o
filho, num tom de estranheza.
— Para variar e até certo ponto...
Depois, prosseguiremos como melhor convir.
Tudo aquilo era, para nós, estranho
de tudo. Em todo caso, dadas as condições de nossos conhecimentos,
que se ajustavam bem no campo da insuficiência, do conhecimento, não
articulamos palavras. As instruções viriam, como de costume,
diretamente e no momento preciso.
A qualquer coisa que lhe dissera a
esposa, ouvimos de Mesquita:
— Quero que os amigos espiem, da
ponte, para ambos os lados. Para isso é que iremos de carro.
Qualquer ação, para eles, constitui um aprendizado útil.
De carros, de fato, a cidadezinha
andava cheia, quer a tração animal, quer a motores. Eu pensava nos
caminhos, não nas viaturas. Minha idéia, desprovida de elementos de
prática, corria antes para o avião. Francamente, tão igual à
Terra é o céu, que cheguei a crer mais útil um pára-quedas. Pode
parecer infantilidade, mas é o caso. E que mente não se tornaria
infantil por aqui, pelo menos nos primeiros instantes? Vinha agora o
caso da ponte. Que ponte, pensava eu? Mas sabia que haveria uma
ponte. Por quê? Porque tudo é simplesmente sério em lugar de gente
séria. É celestial o ambiente que se orna de criaturas educadas,
sem afetação, gente simples e dedicada, que não mede atenções.
Com o ruído que se ouviu lá fora,
julgou-se chegado o carro. De fato, Mesquita nos convidara a sair. E
o carro era a tração animal, pois dois lindos cavalos brancos,
garbosos, puxavam o mesmo. Subimos, e o homem do carro falou com os
animais. Não tinha chicote. Ouvida a ordem de caminhar, partiram
como se estivessem apostando corrida. Sentia-se o prazer com que
faziam a galopada. E lá fomos, estrada afora, até terminar o
casario. A lua começou a despontar no horizonte, o céu bastou-se de
luzes piscantes.
— Já se vê a ponte! — anunciou
Cristina, com entusiasmo, estirando a mão para uma das bandas.
De fato, ao longe, numa curva imensa,
divisava-se uma listra de luzes, havendo por baixo como que um vão
escuro. Era do tamanho de um país inteiro aquela paisagem! E, pelo
que se podia com facilidade constatar, pareciam deslizar, não mais
galopar. Era imensamente agradável aquilo tudo! E com pouco mais
dávamos entrada na cabeceira da ponte, onde guardas nos saudaram. Lá
mais ao longe, Mesquita falou ao homem condutor do carro. E este se
dirigiu aos animais, que prontamente o atenderam, parando.
Convidados por Mesquita, descemos e
fomos espiar pela guarda da ponte. Era de estarrecer a altura da
mesma! Arrepios me varreram todo, dos pés à cabeça, de modo
incontrolável. Devia ter quilômetros de profundidade! Pois com o
clarão da lua, iluminando tudo lá em baixo, tinha-se a impressão
de estar num avião e este em grande altura. Aquilo era lindo e
trágico ao mesmo tempo.
— É a Terra aquilo lá embaixo? —
perguntou Fábio, com voz sumida.
— São as zonas inferiores, lugares
de dor... — esclareceu Mesquita.
— E onde termina a ponte? — quis
eu saber.
— Num ponto fronteiriço. Como
ireis ver, temos ali uma fortaleza organizada. Por esta ponte passam,
quando tornados dignos de socorro, aqueles que precisam de estágio
em tais lugares. Há todo um mecanismo por desenvolver-se, para que a
Justiça se cumpra. Quem fez por cair no lodo, terá de fazer por
sair dele. Em nós estão as condições, as qualidades e as leis. O
plano superior envia-nos mestres, para que nos falem das coisas de
que somos senhores por natureza, mestres que nos ofertam mãos
amigas. Logo, o Plano Regente nos dá tudo e nos ensina do melhor
modo. E quem erra angaria o dever de reparar.
A seu convite voltamos ao carro, que
nos conduziu ao fim da ponte, onde tocava no solo. Mas ali havia uma
construção enormíssima. Centenas de trabalhadores guarneciam-na e
guarnecem. Há muito de preparativos defensíveis, de torres de
espia, de postos projetores de jatos, etc. Escutam-se gemidos, ao
longe, pungentíssimos. Quem não está preparado, sente-se ali muito
mal, como se estivesse sendo invadido por ondas corruptoras do
equilíbrio. Mesquita advertiu-nos em tempo oportuno:
— Não pensem com afinco nos que
gemem agora. Lembrem-se daqueles a quem fizeram gemer, de um modo ou
outro. Lembrem-se de que em Deus não existe injustiça, precisamente
porque colocou em tudo e todos, fundamentalmente, o tribunal de
perene judiciado. Quando se age, já se lavra desiderato. Quem faz é
o mesmo que pune. Não há justiça externa por acusar e nem por
apelar, a menos que seja por meio da justiça interna. Quem ali está,
amigos, é porque ali se pôs pelas suas obras. Ali estão ateus,
céticos, donos de títulos, rotulados em geral. Menos os virtuosos e
os verdadeiramente sábios.
— E nem em Deus haveria injustiça!
— exclamou Fábio, gravemente.
Mesquita olhou para um relógio, que
se achava na parede da sala do diretor daquela fortaleza, que se via
de uma janela, avisando:
— Vamos embora? São vinte e uma
horas, faltando apenas trinta minutos para que comecem as operações
espirituais naquele Centro de que nos falou Fábio.
E fiquei pensando como poderíamos
fazer o resto da viagem. Lá fora, todavia, o diretor deu-nos mais
cinco trabalhadores, observando:
— O coeficiente do poder de vontade
dá e sobra, mesmo em caso de fracasso de alguns dos novatos.
— Com essa ajuda, Matias, nós
iremos de um lance. Não terão tempo de fracassar, mesmo que o
queiram — comentou Mesquita.
E havendo-nos posto à vontade,
zarpamos pelos caminhos do éter cósmico, atravessando tudo e sem
dar por elas. Quando chegamos ao recinto do Centro, ainda era cedo,
pois as operações, segundo tinha indagado Mesquita, começariam a
ser executadas das vinte e uma e trinta em diante.
— Não se esqueçam de que estamos
fora do alcance de visão dos presentes, por minha vontade. Não
percam de vista e atenção a esse fato. Não há fenômeno sem lei,
e, a menos que nos seja necessário, queremos não ser vistos. Quero
que tenham inteira liberdade de locomoção, para que possam observar
tudo com clareza, o que não seria possível nos tornando visíveis
ou relativamente materializados. Como tereis lido, podemos, em nossos
corpos perispiritais, pela vontade e por delegação superior, operar
mutações nesse sentido dentro de um limitado campo. Há um limite
para o máximo condensável e para o máximo fluido; isto é, um
campo de flexão que nos está ao alcance, para, pela vontade, ser
utilizado. Quero forçar ao máximo o poder de fluidez. Não quero
que nos percebam a presença.
— Pensaremos em nós, somente,
quando sentirmos qualquer coisa diferente; não é melhor? — propôs
Fábio.
— Mas não se esqueçam de que
somos peças do Senhor; e que sem ligação com o Todo, nenhuma parte
se sustentaria em ordem, para ser e para servir — observou o nosso
mentor.
Assim observando, com relação ao
dever de pensar em Deus, o Deus interior, como de fato convém e é,
foi para o lado de Fábio e teceu considerações mais ou menos
assim:
— Você, Fábio, ficou ressentido
de uma operação mal realizada. E eu já lhe disse sobre os fatores
interessantes ao bom êxito, como sejam — ambiente psíquico em
geral, grau de capacidade do agente desencarnado, intensidade
mediúnica e ectoplásmica do médium; e, talvez acima de tudo, o
merecimento do paciente. No entanto, como vê, baixíssimo é aqui o
nível em geral. Aí estão cinco pessoas que deverão ser nesta
noite submetidas ao bisturi. No entanto, estude a aura de cada uma;
sonde a intensidade das ondas mentais, verificando por si mesmo que o
caráter, em geral, não está preparado. Há falhas nesta casa; e
falhas que prejudicam muito o resultado do trabalho em geral. Faz-se
mister, aqui, boas preleções, quer de ordem moral, quer de fundo
técnico, quer de caráter doutrinário.
Eu, naquele tempo, entendia dessa
espécie de trabalhos espiritísticos muito menos do que hoje; mas
compreendi bem que Mesquita observava tudo, em matéria de moral,
doutrina e técnica. Isso, enquanto se estava no campo teórico;
porque, em seguida, começaram as danças e cantorias, todo um
movimentar de formalismos e idolatrias, de ingerências pagãs, de
coisas que definiam o ignorantismo ambiental.
— Eu preferia ir-me embora. —
alvitrou Fábio — Nunca me dei bem em ambientes assim tisnados pela
falta de conhecimentos os mais rudimentares.
— Salva-se o que há de boa vontade
— interveio Cristina.
— Podemos ir, caso queiram. Temos
de deixar Adroaldo no recinto familiar, de acordo com a ordem e
pedido que fez — propôs Mesquita, por nos atender.
E enquanto discorríamos sobre o ir
ou não, o ambiente se tornava abafadiço, insuportável, por
saturação. Um magnetismo inferior começava a invadir tudo e todos,
sacudindo os encarnados presentes, que deviam julgar ser aquilo
força, pois é comum ser a nuvem tomada por Juno... Lá num canto, o
primeiro paciente ia ser deitado sobre uma mesa. Foi de fato deitado.
E com o apagar completo das luzes, foram caindo os médiuns em
transe, passando alguns agentes do nosso plano a lhes extrair, pela
boca e narinas, ectoplasma em estado pastoso, com o que foram outros
dando-se a condensar ou materializar ferramentas, medicamentos, etc.
A maior porção de elementos ectoplásmicos, subtraídos a dois
homens, era usada pelo operador astral. Eu jamais teria sido capaz de
pensar, em semelhante coisa; mas o certo é que, em dado momento,
como notassem o desperdício de material, colocaram um aparelho na
cabeça de um dos médiuns, que por um tubo se ligava à cabeça do
operador. Devia ser e era, de fato, um aparelho feito
propositalmente, pois tinha todas as características de adaptação.
E a operação começou, naquele
ambiente de sufocação. Para mim, difícil ia se tornando suportar a
densidade ambiental, por injunção da intensidade hierárquica
inferior, em matéria de padrão vibratório. Talvez fosse melhor
realizar o serviço de adesão ao meio, aquilo que Mesquita não
queria; isto é, materializar-nos à proporção do meio. E pensando
nisso, por não poder conter-me num tão mau estado de estar, fui
falar a Mesquita. E ele me convidou a sair:
— Fábio já está lá fora; vá a
ele, que logo iremos. Quero auxiliar essa gente, segundo como possa e
Deus me permita. É você que está cedendo, por pensar de certo
modo.
Foi então que notei a ausência de
Fábio. Fui para fora, sem me dar conta de que transpunha corpos
opacos, sem os sentir, sequer. Lá fora, outra era a atmosfera
reinante. Daquilo que as plantas e flores do jardim exalavam,
podíamos captar o mais sublimado, deleitando-nos com isso. Esperamos
um bom tempo. Quando Mesquita saiu, acompanhado de Cristina e os
demais, estávamos em conversa com dois outros irmãos, vindos de
esfera também inferior, a quem quisemos falar, densificando nossos
corpos, materializando-nos à proporção.
— Vamo-nos? — convidou Mesquita.
E como soubesse que ia ao domicílio,
pela primeira vez depois de ter deixado a farda mais densa, exultei
de contentamento. Exultei de nervosismo.
ÍNICIO - CAPA