O DOENTE
Uma vez no interior da casa, e no
cômodo em que se achava o doente pude verificar, com espanto, que
era meu irmão mais velho, de quem havia perdido o contato fazia
muitos anos. Isso causou-me muita consternação, a princípio;
depois, porém, com as explicações de um dos amigos, tornou-me a
paz ao espírito, vindo mesmo a sentir imenso prazer, pelo desfecho
que iam dar ao caso.
— Não se turbe por razão alguma,
que visamos com esta doença, carreá-lo ao conhecimento do
Espiritismo. E como terá de ir junto dos parentes, que deixou
distante, por via de um inventário que terá trâmites em movimento
dentro em pouco, por ele tornaremos a muitos conhecedores do Batismo
de Espírito, razão primordial de nossos trabalhos. Como já deve
ter notado, tudo vimos de fazer para que o Batismo de Jesus se torne
o mais conhecido possível. O caso deste seu parente e nosso amigo é
muito mais que um caso de cura, o que não nos importa muito, será
um caso de evangelização à consoladora, o que de fato é
interessante.
Subindo em valores mentais e incurso
no programa de ação por tanta proximidade, passei a dar ao caso
muito de aplicação sentimental. Quando um daqueles três servos de
mandato superior ordenou a Fábio que sondasse bem ao paciente, que
acordado vigiava os minutos que se iam deslizando por sobre a
eternidade, também me aproximei, querendo ver, querendo auscultar.
Sorrindo, o mentor encarregado de serviços, disse-me:
— Bem se vê que não aprendeu
ainda o bom espiritualismo. Não reconhecesse no doente a um dos seus
e assim não se portaria. O verdadeiro amor, amigo, paira acima dos
relativismos do mundo. E nem sequer pensa sobre o fim em vista; seus
sentires enveredam pelo cuidado puramente físico da vida.
— É verdade... Mas, o que vou
fazer?
— Seu irmão, se viesse para estes
lados dentro de um ano, por certo que iria para os lugares menos
felizes... Procurou muito na vida, mas tudo de ordem material. É
pobre de dinheiro, mas foi rico de saúde, tendo gasto o que tinha e
o que poderia chegar a ter, em atuações negativas. Não pensou nos
filhos, não se deu ao serviço de ponderar sobre a responsabilidade
da função paternal. Foi pai infeliz, marido infiel, cidadão
deficiente, religioso formal...
— Ele jamais deixou de ser achegado
à igreja, nos atos religiosos. Se mais não deu, meu prezado mentor,
foi porque também pouco lhe deram — argumentei, não para
pretender convencer ao bondoso mentor, mas porque me invadia uma
tremenda repulsa contra o que fazem no mundo, aqueles que se presumem
ministros de Deus, simplesmente por nada fazerem de caráter
verdadeiramente religioso.
— A verdadeira Igreja é aquela que
o homem tem em si mesmo, que são os valores inatos, os divinos
tributos. Por tais elementos, amigo, cada um pode saber o que mais
lhe convenha ou não. Quando Jesus recomendou não se fazer aos
outros o que não convém a nós, apelou ou ensinou a apelar para
tais reservas internas. Nenhuma organização religiosa precisa
ensinar a quem quer que seja que é melhor viver com saúde e em paz,
porque isso até os animais inferiores o sabem e prezam, movidos pelo
instinto de conservação. Não pode e não deve, pois, homem algum,
culpar simplesmente a um credo qualquer, pelo que deixe de ensinar de
mais certo. Pela ordem íntima da vida responde, isto é, pela
conduta moral-mental-execucional responde o próprio cidadão, ele
que sabe até instintivamente o que mais lhe convém, aquilo que
gostaria lhe fizessem os outros. Nenhuma religião é contra essa
regra intelecto-moral; logo, pela aplicação à vida, quem responde
é o indivíduo. Compreendemos as deficiências religiosas dos
credos, ou das clerezias do mundo, mas, sabemos que nenhum religioso
o é cem por cento, à medida que a sua religião lhe ensina e indica
como programa de vida. E se é dado ao indivíduo não aceitar tais
ou quais recomendações, por achá-las injustas ou falhas, por que
não se responsabiliza ele pelo que pode buscar e cultivar,
independentemente de sectarismo, de facciosidade?
O
certo é, porém, que enquanto aquele mentor me conduzia o pensamento
para longe do trabalho a que se davam Fábio e os outros dois
mentores, eu me invalidava como agente emissor de emanações então
só prejudiciais, por desenvolver atuação mental de ordem negativa,
por particularizar lei de fundo universal, com o meu sentimentalismo
de irmão carnal. Naqueles dias, amigos, ainda pensava assim: meus
parentes, meus amigos, meus interesses pessoais, tudo tinha de ser
melhor, preferível por Deus e pelos homens, encarnados ou
desencarnados, pelo simples fato de que a questão era minha ou me
dizia respeito. Aquele mentor, portanto, o que quis foi subtrair-me a
interferência, sem disso dar-me conta no momento. Mais a distância
foi que me disse:
— No encarnado ou desencarnado,
amigo Adroaldo, o tom vibratório se modifica em intensidade, em cor
e propriedades, de conformidade com o sentimento que o mesmo passe a
viver. É preciso encarar toda e qualquer questão, antes de mais
nada, de modo universal. Enquanto nossos interesses forem superiores
aos dos outros, só porque nós somos nós e os outros são os
outros, seremos falhos, frágeis e prejudiciais. O egoísmo, o
conservadorismo tacanho, o fanatismo em geral constituem o grande
entrave da marcha ascendente da Humanidade. É preciso ser do
Universo, assim como o Universo é de todos nós. Temos tudo para
ser. Depende de nosso esforço de realização mais imediata. Nós
não somos da Terra e nem das suas leis relativíssimas; nós somos
Essência Divina, com direitos de universalidade ao infinito. É,
porém, em caracterização individual que teremos de elaborar a
conquista desses esplendores indizíveis; e com apegos broncos,
fanáticos, egoístas, jacobinos ou cabotinos, por certo que não
atingiremos a tais píncaros espirituais. No caso de seu irmão, por
exemplo, não via o ser imortal com a responsabilidade imensa a
pesar-lhe sobre os dias vindouros; via, como costuma ver o encarnado,
que quer os seus saudáveis, fortes, rijos, ricos, sobraçando
títulos, comendas, regalias do mundo em geral, mesmo que com isso
estejam a se aproximar dos abismos, em carreira vertiginosa.
E era isso mesmo, pois assim que me
vi envolvido no enfronhado parentesco, no grilhão consangüíneo,
deixei de pensar na vida, para pensar na morte; deixei de encarar a
coisa pelo prisma deste lado, para encará-lo pelo sistema da carne,
que é conservar as aparências, mesmo quando a essência se tenha
apodrecido. A enorme valia é que tais mentores não tinham nós ou
ataduras pela língua; cultivavam um fraternismo à toda prova, duro,
mas eficientíssimo. Por aqui não é possível ser túmulo por
dentro e parede caiada por fora... Isso, só na Terra e nos países
inferiores do astral. Aqui, e daqui para cima, quem se prender ao
menos feliz virá a se encontrar em descida hierárquica, em carreira
para os planos menos recomendáveis. E isso não é impossível de se
dar; sei hoje de irmãos, ainda cidadãos de regiões pouco menos
vantajosas, que de se apegarem às coisas do mundo, por questões de
falhas cometidas, ou pretendendo interferir nas obrigações
atinentes aos do plano da vida material, ou assim dita, chumbaram-se,
tornaram-se doentios, insuficientes para o retorno devido. Até mesmo
de males que se haviam livrado, doenças por assim dizer trazidas do
mundo carnal, de novo se viram presas, se tornaram vítimas. É bem
um grande caso, para estudos profundamente sérios, esse caso da
ideoplastia. Por a idéia a funcionar, embalá-la com as forças
tremendas do sentimentalismo, eis uma fonte interna capaz de fazer
jorrar os céus ou os infernos de dentro do próprio homem! Na carne,
a barreira constituída pela mesma carne, não deixa que o desfecho
seja repentino; mas nestes planos de vida, com a tenuidade da
matéria, para mudar depressa tanto basta se pense com afinco. E esta
lei basta para que cada um pense, e pensando se compenetre, de qual
seja o poder das obras sobre a edificação hierárquica. Quando o
homem quiser certificar-se de que a vida é lei geral, e que o
processo do céu é o de ordem executiva na vida de relações, então
poderá falar alguma coisa sobre isso a quem chamam de religião.
Religião é o que há de mais grave
por ser cogitado pelo homem. Pode mistificar o homem, para o que
quiser e o quanto quiser; jamais mistificará para com o seu
princípio íntimo de religião, que é onde se refletirá tudo
quanto venha a fazer, por mínimo ou estranho que pareça ser às
coisas do espírito. No fundo, a verdade é que a vida em si é
religião; mas, amigos, é religião segundo a Vontade Suprema, que
não pergunta e nem diz, por querer e determinar, no sentido de que
cada um, por si, se identifique com a sua santidade interna. Triste
destino, pois, o destino dos cultos exteriorísticos, das
formalidades, das idolatrias, quer as de ordem mental, moral,
intelectual ou material. O Ego, para vir a gozar dos bens latentes,
precisa desabrochá-los, nunca, porém, precisaria de torná-los
sepultados sob o peso dos farandolismos inventados por homens. Sanear
a mente, elevá-la à custa de bons saberes, e por moralização
normal pô-la a viver com simplicidade, eis a verdadeira prática
espiritualista. O mundo faz o contrário, ensina o caminho inverso,
concita o culto dos fantochismos em geral. Para as clerezias em
geral, não basta buscar com afinco o melhor conhecimento das leis do
Senhor, que são as do Universo; não basta viver decentemente, de
modo sadio, é preciso que o cidadão do mundo seja freguês duma
banca qualquer, compre quitandas, creia nelas, que as use e recomende
ao mundo todo. A vida íntima iluminada pelo sol da Verdade, isso não
interessa aos vendilhões dos templos, o que interessa é o
abastardamento, a crença nas hierarquias, o apreço pelos graus,
pelos títulos, pelos rótulos em geral.
O meu irmão, portanto, havia
corrompido, gasto o quantum de poder vital, de que fora ao mundo
dotado, em orgias, em relaxamentos; e, naturalmente, sobre si
acarreta o correspondente moral, o débito perante a Lei de
Equilíbrio, que do íntimo bradaria por resgate, por reequilíbrio,
em tempo oportuno, projetando-o ao banco dos réus, que é todo lugar
de pranto e ranger de dentes.
Fábio, então, dera de si tudo. E
quando foi necessário mais aplicar, então os dois mentores
completaram; puseram-lhe as mãos sobre a cabeça, fazendo jorrar
sobre ele torrentes de luzes multicores, fluidos curadores, que pelas
suas mãos se iam, pelas pontas dos dedos, penetrando no corpo de meu
parente. Este, em pouco tempo adormeceu, vindo de fora do corpo,
atraído pela vontade daquele mentor que comigo falava, que o puxava
pela mão perispiritual. Uma vez saído, cambaleava, assim como se
estivesse embriagado.
— Venham para cá — convidou o
mentor chefe.
E os dois deixaram o corpo, para
virem atender com forças energéticas próprias ao espírito
enfraquecido, através do perispírito. Foram novos jorros, mas agora
separados, prevalecendo os tons amarelos e esverdeados. Dentro em
pouco, com as melhoras apresentadas, passaram aos tons azulinos.
Quando estes se foram apresentando bem mais claros, meu mano estava
bem disposto, ficava de pé sozinho, procurava falar.
— Veja o seu mano, Adroaldo.
Converse com ele — convidou o mentor chefe.
Meu mano teve um abalo forte,
precisando de interferência dos mentores. E, depois de um pranto a
dois, pois não pude conter-me, fomos volvendo ao tom necessário, de
equilíbrio. Conversamos muito bem, graças ao sustento que lhe deram
os mentores, Fábio, então, disse-lhe com carinho:
— Vicente, você precisa procurar o
Espiritismo. Do contrário não poderá recuperar a saúde, como lhe
convém. Tome passes, use a água fluidificada, converse com pessoas
espíritas bem esclarecidas.
Fábio foi repetindo, os mentores
foram-no recolocando no corpo e ele foi sumido por entre as
densidades do plano carnal. Ao dar de si, acordou, meio inconsciente,
chamava por mim, repetidamente. E com isso vieram meus sobrinhos,
depois minha cunhada, aflitos todos, falando em pesadelos, em
quejando tais, menos no soberano realismo por ele vivido há alguns
minutos.
— Vamos embora — disse o mentor
chefe, acenando com a mão.
Poderosas vontades partiram com o
querer. E singramos pelos espaços afora, subtraídos aos vibrares
inferiores pelas sintonias com os superiores. Com o Sol a despontar
na nossa região, chegamos. Minha alma se apresentava triste, de
certo modo bem triste, por reconhecer a fragilidade espiritual do
irmão encarnado e a distância em que se encontravam todos, na
família, da realidade da vida astral e dos porquês da encarnação.
Foi quando um dos mestres me disse, com a bondade que caracteriza os
seres realmente fraternos:
— Não padeça por isso... Trabalhe
bem, ore racionalmente, que lá iremos tantas vezes quantas
necessárias forem, para que o seu parente vá a um Centro e para que
ele enverede os demais. Nós ainda falaremos com ele por meio da sua
cunhada... Deixe isso com a Sabedoria do Senhor.
Minhas faces se foram banhando.
Lágrimas quentes rolaram por elas abaixo, lágrimas de gratidão e
esperanças felizes. Quando fui deixado a sós, no meu quarto, queria
dobrar os joelhos para orar, vergado sobre o peso da tradição; mas,
de pronto, lembrei-me do catecismo estudado, dos seus ensinos.
Recomenda o nosso catecismo o máximo respeito pelas obrigações e o
envio de ondas mentais para o íntimo do Ego, onde se deve conversar
com Deus, a Essência Divina. De pé, com os olhos rasos d’água, o
coração transbordando e a mente penhorada às coisas da Vida
Superior, agradeci, pedi oportunidades, para trabalhos fraternos. Em
torno de mim ouvi palavras surdas, sumidas... Depois ouvi música,
melodias, cânticos... O céu interno devia ter atingido a altura
necessária, o ponto de contato com as vibrações superiores. As
harmonias do Universo, presentes sempre, estavam a ser por mim
experimentadas, por apelar a elas, em espírito e em verdade, sem
formalidades, sem ídolos, alheio a qualquer idolatria. Foi a
linguagem pura de filho para Pai, confessando, desejando o bem; e a
resposta foi gloriosa, universal, como resposta de Pai Supremo, em
acordes tão maviosos o quão profundos e indefiníveis. Nem nas
reuniões coletivas, onde pregadores de outras regiões inflamavam as
almas com seu verbo lúcido, assim coisas tinham acontecido. Sentindo
em mim, como que ao longe, melodias divinais, deitei-me por alguns
instantes.
— Farei o possível — foi o meu
remate.
ÍNICIO - CAPA
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