NO CHÃO DO MUNDO FÍSICO
Não sabia eu para que canto do mundo
iríamos. Sabia que iria ouvir uma palestra, que seria proferida por
um pregador encarnado. Isso, para mim, tinha significação ampla,
tomasse lá a coisa como tomasse, pois vinha de uma escola religiosa
falhíssima, inimiga das melhores verdades do Cristianismo e cultora
de umas dezenas de formalidades pagãs, copiadas entre um pouco do
levitismo hebreu e mais um tanto da mitologia greco-romana. Estava,
por mim mesmo, no gozo de superior vilegiatura espiritual. Nunca
havia sido trunfo, não tinha nomeada no mundo por resguardar;
sentia-me entre vivedor comum da vida e espectador a quem os fados
brindavam com suaves meneios de felicidade cosmopolita.
Atravessadas umas regiões
escuríssimas, à margem do seu poderio por oposição vibratória
que gente sabida e virtuosa dominava a bel-prazer, pousamos nossos
pés em terra mais densa. Era o Rio de Janeiro, num subúrbio
distante, lugar incrustado entre montanhas e serras. O casario
coalhava a paisagem enluarada.
— Vamos andar um quilômetro a pé?
— consultou-nos Cristina.
— A questão é o fator tempo —
intervi, por fazer meus cálculos.
— Eles começam sempre pelas oito e
meia. E eu nasci neste lugar... Quantas vezes cruzei esses caminhos,
quantas coisas alegres e tristes estas montanhas me viram viver!
Apesar dos desenganos da vida, mas considerando-a como uma sabatina
perante a própria necessidade de edificação pessoal, ela é bela e
encanta-nos por múltiplas razões. No meu deslizar último pela
terra, fiz novas amizades, conquistei conhecimentos, arranjei deveres
sociais que não quero se percam no emaranhado dos séculos dos
montes e das serras, ouvi a Voz de Deus, assim como através dos
vales e o canto das aves pude sondar o que de Divino encerra o ritmo
da vida. E olhem bem para o quadro que temos diante; calculem, com
alma, a soma de poesia com que a Sabedoria Suprema edulcora a vida do
homem, oferecendo-lhe elementos sobre o que raciocinar, material
divino com que tecer o manto do conhecimento real. Em sã razão,
como se poderia ser ateu, materialista ou partidário do caotismo, em
tendo pela frente, para observar, para estudar, para sentir, uma
visão como esta?
Realmente, a paisagem era
espetacular. Do cimo de uma montanha, apesar do sombreado noturno, o
luar favorecia uma visão portentosa. Silente era o local; só de
quando em quando, vindo lá dos vales, um som qualquer rompia a
quietude enebriante. Eram vozes infantis, pipios de aves, latido de
cães, surdamente chegados, quebrantados pela distância. Para o
outro lado, rumo das serras virgens, o quadro se mantinha puro, sem
retoques humanos. O ondeado se perdia de vista, indo confundir-se com
o matizado de estrelas no bordado sem fim dos espaços. E para o
espírito recém-chegado na ciência do Divino Monismo, da
onipresença de Deus, tudo isso em que faria pensar? Que sentimentos
desabrochariam num ser, pela incursão de tais cátedras em seus
recônditos sonhadores? Duro seria, amigos, discernir bem à torrente
de anelos sublimes que do fundo do eu vinham à tona, tomando
expressões idealísticas fantásticas, engorgitando o cérebro,
enfunando docemente o receptáculo de anseios soberanos, que todos
devemos comportar, embora não me seja possível precisar, quer onde
esteja na estrutura do eu, quer do que seja feito, bem assim como me
escapa, também, que idade certa poderá ter e até onde teria
crescido ou deixado de o fazer, no sentido mais conveniente.
Vieram-me à mente, de chofre, as
palavras de Jesus, sobre a carência de simplicidade em que mergulha
o homem. Ante tanta sabedoria, tanto esplendor organizado, todas
aquelas liras divinais a expor ostensivamente uma Soberana Causa,
como podem vingar no mundo, desenvolverem-se, tomarem conta das
gerações, pensamentos negadores, filosofias bárbaras, egoísmos
destruidores, vaidades chãs, ostentações criminosas? Que germe
triste, em que tempo de sua formação de caráter pessoal, penetrou
no recesso humano o separatismo, a discórdia, o ódio, a vingança,
a idolatria, o mercantilismo do que é universal, puro, presente e à
vontade?
Ainda bem que Alva nos convidou a
andar, tendo assim descido da montanha a fruir, pela vontade, das
influências salutares da vegetação em fragrância. Lá mais
embaixo, os ruídos aumentavam em potencial, também aparecendo
alguns vultos perambulantes.
— É ali — apontou Alva para uma
casinha simples que se elevava sobre o outeiro, cercada de um
milharal embandeirado.
Esquecido do meu estado, parei no
portãozinho, pensando em bater palmas. Alva sorriu e disse qualquer
coisa agradável. Cristina afirmou ter feito isso, muitas vezes,
durante suas primeiras entrevistas com o plano mais denso e familiar.
Varando corpos opacos à vontade,
viemos a nos encontrar entre oito irmãos da carne e uma dezena de
congêneres. Feitas as apresentações, disseram-nos que mais uns
milhares viriam, ainda, de variantes pontos astrais, bem como
encarnados cujos corpos estavam em descanso no momento, em virtude de
situações geográficas.
E a palestra nossa, por engraçado
que pareça, girava em torno dos conceitos emitidos pelos encarnados,
em prosa entre si. Eram oito pessoas adultas, mas não idosas. O mais
velho não teria quarenta anos; e devia ser o chefe de família da
casa onde estavam reunidos. Foi Alva que me falou:
— Não são procurados, porque
gostam do mais edificante da Doutrina, que é a emancipação
intelecto-moral. Onde são distribuídos quitutes ritualísticos,
onde as posições de mando vigoram, onde se ofertam curas
milagreiras, onde há o ornato aparatoso e mundano, naturalmente deve
haver muito mais freqüência. Estes cinco homens e três mulheres,
gente do povo, que têm consciência da cauda que ainda carreiam,
figuração que faço para configurar a falta de evolução, por isso
mesmo buscam afastar-se do que expresse exteriorismo vão. Não
possuem um estatuto, uma sociedade, nem dias certos para as suas
reuniões; marcam um dia, reúnem-se, estudam, tiram de onde há
sobra e põem onde a falta é notória. Amparam casas de caridade,
lêem regularmente, assinam revistas e jornais doutrinários. São
associados de casas federativas, respeitando o trabalho de divulgação
doutrinária que lhes compete... Enfim, estão a par do movimento, no
país e no mundo.
E, num momento, um como aluvião de
criaturas deu entrada no recinto. No recinto? Sim, mas num recinto
que se converteu num imenso salão, à custa, naturalmente, de
vontades superiores. O cômodo pequenino multiplicou-se dezenas ou
centenas de vezes! O denso, o opaco, o mais relativo, desapareceram!
Luzes diferentes, argentinas, banhavam o ambiente geral. E com o dar
o relógio dos da carne nas oito e trinta, um jovem, o mais jovem de
todos, pediu para que todos viessem para a mesa, pedindo, também
para que fossem retirados de cima dela um vaso de flores e uma toalha
muito bonita que a cobria. E assim foi feito. Tudo simples, sem
adornos extemporâneos.
Todos a postos, e de nosso lado
também todos dispostos em escala ascendente, frente ao jovem que
iria palestrar, disse ele, falando brandamente:
— “Em natureza, possibilidades e
vontade, aqui estamos para mais um ato de estudos proceder, em
comunhão com os amigos do continente mais tênue, mais intenso.
Deselegante seria, é natural, deixarmos de forçar um contato mental
e de profunda significação moral, pela prece, pela emissão de
pensamentos. Como o Ser Total, ou Deus, é tudo em todos, porque tudo
o que há é modo ou condição de ser da própria Unidade
Fundamental, é natural que não iremos fincar os olhos no teto da
casa, ou pretender procurar e encontrar a Deus, como figura humana ou
de qualquer forma individualizada, fosse em qualquer esquina do
infinito, fosse em qualquer recinto preposto. O mais certo, o mais
racional, o mais exemplar do ponto de vista psíquico, é que a Deus
busquemos no íntimo de nós mesmos, nas profundezas de nossos Egos,
no topo de nossas melhores e mais santas fulgurações espirituais. E
convém deixemos de parte o medo, o temor, o sentido supersticioso
com que os enredos clericais do mundo, de hoje e de todos os tempos,
jungiram tais atos de fé, tal exercício do espírito; Deus deve é
ser compreendido e amado, executada a Sua Vontade, e, portanto, com
Deus devemos conversar, dizer, escancarar a alma, assim como convém
e é justo, francamente.”
“Para com Jesus, porém, que é a
Entidade Diretora do Planeta, e que por injunção hierárquica
orienta dos imos vibratórios, das regiões interestelares, da
região-diretora, devemos transmitir nossa mensagem mental, através
do éter universal, afiançando que, simplesmente, fraternal e
obedientemente, queremos prosseguir no Seu Caminho, que é o da
Verdade ou de Deus, por compreendermos a necessidade de emolumentos
educativos, em nós mesmos e para a confraria universal. Como
autoridade designada, a presença de Jesus é perene, podemos,
também, subindo no padrão vibratório interno, comungar com a Sua
gama comum. Já temos falado sobre serem as gamas vibratórias
universais, correspondentes aos estados hierárquicos individuais.
Quem pensar, portanto, num ser, pela concentração, que é a força
ondulatória indiscutível, estará procurando sintonia com o seu
grau-padrão-vibratório. Se tivermos, portanto, a Jesus nos nossos
corações, fácil será lhe dizermos dos nossos desejos, para que
nos cumule de oportunidades sagradas”.
E
aqueles irmãos encarnados ouviam com tal carinho aquelas palavras,
que iam num crescendo fantástico, aumentando em seu brilho,
atingindo uma altura intensiva tal, que era lindo de ver, proveitoso
de estudar e consolador de fruir. Ao assim ouvir sobre Jesus, também
devo ter subido um pouco, chegando a ver e, regularmente, os cinco
irmãos que formavam ao lado do jovem que falava, influenciando-o.
Eram altas figuras do nosso mundo, aureoladas em luzes mistas, mas
onde o azul se distinguia, de mescla com filetes doirados e opalinos
brilhantes. E com essa melhora para mim, mais agucei o entendimento,
procurando corresponder à graça alcançada. E o jovem prosseguia:
— “Para com os nossos amigos de
além-carne, trabalhadores da Causa Sagrada, mantenhamos uma perene
certeza: que nos auxiliarão, por determinação do Supremo Poder, na
proporção direta em que nos dermos a servir aos nossos irmãos.
Ninguém ficou e nem ficará, jamais, sem companhia astral; mas esta
será correspondente ao propósito direcional que a criatura se der
por seguir. Tudo, pois, segundo como nos dermos a vibrar. Espíritos
de todos os alcances hierárquicos pululam pelos espaços e regiões
etéreas; cumpre-nos saber o que nos convém, para nesse sentido
aplicarmos esforços sintonizantes. Lei é lei; e a que junge aos
seres afins nunca será derrogada”.
Estancou um pouco e recomendou:
— “Oremos, pois, em silêncio,
que carecemos é de intensas vibrações”.
E oraram pelos Supremos Poderes,
pelos guias, pelos sofredores em geral. Emitiram os mais belos jatos
luminosos que jamais calculei, fosse isso possível a quem estivesse
preso ao continente denso. Em seguida, começou de novo o jovem a sua
fala. Aqueles cinco mentores astrais se aproximaram mais do jovem,
influenciando-o.
— “Comecemos, portanto, nosso
bate-papo de hoje. Tivesse que dar-lhe um título, seria este — ‘Um
passeio pela história’. — Porque isso é o que iremos fazer, com
as mercês de Deus. E, como de costume, abordemos o mais difícil em
primeiro lugar”.
ÍNICIO - CAPA
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