SAUDADES DA FAMÍLIA
Pelas dez horas do dia seguinte,
depois de auspicioso passeio matinal, fui encontrar Fábio no lugar
onde lhe era de costume sentar-se, debaixo da magnólia. Ao vê-lo de
longe, ensimesmado, pareceu-me triste. E foi do que lhe falei, assim
lhe estive ao pé.
— De fato — respondeu-me —
trago comigo uma tristeza... Mas, deixemos isso para mais tarde...
Basta-me estar recolhido a esta região de paz...
— É saudade da família, decerto,
o que causa essa tristeza — aventurei.
— Não... É outra coisa; mas é
problema por resolver. Não se importe com isso, porque é questão
de doutrina.
— Gostaria de poder auxiliá-lo.
— Creio... Creio sinceramente e
fico-lhe grato.
E dois novatos de um mundo novo,
mundo novo igual ao mundo velho deixado, como sairiam daquele vácuo
dialogal, não fosse a chegada de Mesquita?
— Parece que estão tristes! —
observou este, assim chegado.
E como Fábio calasse, fiz por
expressar o estado de coisas:
— Fábio quererá, por certo, dizer
ou perguntar alguma coisa. E como disse ser coisa de doutrina, também
muito me conviria ouvir, posto achar-me situado no mare nostrum da
questão. Como sabem, sustentei aversão aos princípios
espiritistas. Todavia, como as coisas mudaram, creio que preciso
mudar, de algum modo.
Embora Fábio não tivesse
simpatizado com o meu atrevido gesto, estava executado. E não me
senti magoado com o seu retorcer de boca, gesto pelo qual expressou
sua desaprovação. Sentia em mim uma incontida vontade de fazer
qualquer coisa a bem da verdade em vista, um prazer em ser malcriado.
De então para cá, posso dizer, se me fosse dado, revolveria o
mundo... Pois sinto que o mundo nada num fétido mar de coisas e
idéias desnaturadas. As convenções afogam o homem. E afogam porque
não se ornam com as belezas da realidade, porque se dão apenas a
cultivar o endosso dos conchavismos menos edificantes. Sendo a
realidade uma, parece que se faz questão de invertê-la, só para
ficar bem com o camarilhismo podre que explora uma situação e a
própria humanidade.
— E quem não está aqui para
servir? — redargüiu Mesquita, com aquele seu costumeiro e afável
tom de solicitude.
— Desejava deixar que uns dias se
passassem sobre a questão. Porque, sem dúvida, não é mais que
algum erro meu considerar o fato pelo seu ângulo menos feliz.
— Mas há mesmo infelicidade?!... —
inquiriu Mesquita, sorrindo.
Fabio tornou:
— Em um tom... Existem várias
formas de infelicidade, não é exato?
— Sim — volveu Mesquita,
observando-o bem — mas se é de fundo doutrinário o ato motivo,
creio que deve expor o que lhe vai pela alma adentro. Em doutrina,
como em tudo, há lei por base. E por lei, amigo, tudo se torna
explicável.
Fábio caiu na meditação, vindo a
mover a cabeça por algumas vezes. Em todo caso, e com forte torcida
nossa, começou por dizer o que sentia, coisa que me pareceu tola no
momento, mas que reconheço hoje, ter lá o seu mérito. Ademais,
cada qual vê o mundo e os seus fenômenos assim como o seu estado de
alma lhe permita e imponha. Só os grandes caracteres é que
conseguem suplantar a força de uma injunção psicológica, por
antepor-lhe os dardarejos contínuos de uma vontade férrea e
inclinada à análise rigorosa. Os menos fortes cedem, mesmo sofrendo
o peso da revolta que não toma posição para a defesa natural. E é
triste cair em fiasco, conscientemente.
Fábio, enfim, disse suas coisas:
— Como sabe, amigo Mesquita, fui
sincero devoto do Espiritismo na minha caminhada na carne. Fiz
sessões, várias, para fins úteis. Creio que, se melhor não fiz,
se mais puro não me dei a ser, se mais sabedoria não vivi, foi
somente em virtude de íntimas insuficiências. Os triunfos do
Espiritismo foram os meus triunfos; as mazelas, espontâneas ou
propositais, provindas dos cultores menos conscientes da doutrina,
constituíam as minhas dores de alma.
E enquanto Mesquita o observava
sinceramente, e de minha parte aguardava o desfecho de uma tragédia
que não apareceu jamais, continuou ele:
— Assim sendo, portanto, não
poderia ter sofrido menos, ao constatar um fato digno de lástima,
uma operação espiritual, como se diz por lá, que em si mesma não
chegou a ser, embora tivesse tomado o aspecto exterior de sê-lo.
Como isso me veio ao conhecimento, horas antes do meu desencarne,
trago comigo a tristeza do fato... Sinto-me realmente compungido...
— Conte-me o caso — atalhou-o
Mesquita, vivamente interessado.
E Fábio relatou:
— Certo amigo, sofrendo de há
muito do estômago, procurou um médico. Este o mandou ao serviço de
radiografia, sucedendo a constatação de uma úlcera. Com medo de
uma operação material, e sabendo de oitiva das coisas que os
espíritos vivem a fazer, nesse ramo de atividades do Espiritismo,
procurou um senhor, de mim não conhecido, que faz sessões dessa
ordem, submetendo-se a ser ali operado espiritualmente. E o foi, de
fato, exteriormente. Mas só exteriormente!...
— Sabe dizer-nos o que ocorreu
depois? — reclamou Mesquita.
— Piorou, foi internado,
radiografado e operado de fato da úlcera, que lá estava inteirinha!
Isso, amigo Mesquita, acabrunhou muito minhas últimas horas na
carne, bem assim como me amargura agora. Creio que os espíritos não
deviam agarrar a quem quer que seja e depois passar um pouco de iodo,
para aparentar uma operação de fato. Quem mente em nome da Verdade
se torna muito mais criminoso, não acha?
E com aquela expressão de mágoa,
esperou por alguma resposta.
Mesquita primeiro encarou-o
seriamente, depois deu-se a sorrir bondosamente para com o amigo. E
brandamente explicou-lhe:
— Admira-me, que um homem
experimentado das coisas do Espiritismo, assim como você é,
deixe-se embair pela incompreensão das coisas. Então, Fábio, não
sabe você que a muitos complexos a mais, que os acontecimentos de
ordem essencialmente material estão sujeitos aos fenômenos de ordem
espírita? Há espíritos de toda ordem, em competência e moral.
Há ambientes de todo o naipe
fornecendo bom ou mau campo para realizações do plano astral. De
qualquer forma, para todos os efeitos, deve-se levar em conta o
relativismo do meio. Pois nem tudo podemos nós, nem podem oferecer
tudo à vontade os do plano da carne. Além do mais, é notório, em
certos casos há mesmo incompetência de ambos os lados. O
relativismo hierárquico faz muita gente de nosso lado não saber
usar o “sim sim” e “não não”, com a devida oportunidade e
realeza.
— Os que não sabem disso dizem
outras coisas... Ofendem a Verdade, por culpa de quem dela se diz
arauto — ponderou Fábio inconformado, muito triste.
— Onde se deu isso? — quis saber
Mesquita, evidenciando certo intento.
— A três quilômetros de minha
casa, num bairro muito conhecido.
— Pois nós iremos ver isso. Pelo
menos, Fábio, saberemos alguma coisa sobre o sistema que usam para
trabalhar, quer os do nosso plano, quer os do plano da carne. Havendo
erro, cumpre reparar na medida do possível.
Fábio levantou a cabeça e esboçou
um levíssimo sorriso. Em surdina, inquiriu:
— Quando?
Depois de pensar algum tempo,
Mesquita respondeu:
— Quando vocês dois estiverem em
condições de fazer a viagem... Está bem?
Tornei-me presa de feliz comoção. E
como me ia pela alma uma tremenda saudade dos familiares, fiz a minha
petição:
— Gostaria, se fosse possível, de
visitar os meus. Sinto um peso na alma, uma enorme vontade de os
rever. A morte supera apenas o exterior...
— É muito natural. — anuiu
Mesquita — E com isso, pense também, de sua parte, no relativismo
em que se vive depois da morte. Não estamos nos planos alcandorados;
estamos numa zona que é reflexo puro e simples da Terra dos
encarnados. Uma duplicata levemente melhorada, mui levemente
distinta. Todos os porquês da vida na carne, aqui repercutem de modo
ainda forte.
— De certo modo sinto-me feliz, meu
bom amigo. — disse-lhe eu — Vir para aqui já é muito mais do
que ir para pior. Tendo paz relativa e bons amigos, isso já
significa muito. Sou grato ao Supremo Senhor, pelo que me reservou.
E como ao dizer isso fizesse um gesto
indicativo, com a cabeça e os olhos, para aquilo que chamamos o céu,
eis que recebi dele uma feliz observação:
—
Se pensou em Deus, de verdade, não deveria ter olhado para cima,
desse modo. Deus não é pessoa e o céu não está lá em cima.
Deixemos esses exteriorismos errôneos, essas idolatrias, para os
encarnados, que dizem primeiro que Deus é Impessoal, Onipresente, e,
depois, nos templos católicos, protestantes, espíritas, etc., ao
dirigirem-se a Deus, querem como que furar os forros, os telhados,
para verem o espaço infinito, povoado de mundos, com olhares tão
piegas o quão simplórios. Deus está no íntimo de tudo e de todos,
por ser o Estado Clássico, a Essência Primeira do Universo Geral. A
Deus devemos falar, é claro, simples e puramente, sem pieguismos e
nem medo, no templo de nossas consciências. Quem olha para longe,
pois, perde a referência. Deus não é uma pessoa; Deus é a Vida em
Si, com a Sua infinidade em Leis e Virtudes. Cada um de nós, e tudo
o mais. Somos-Lhe
partícula infinitesimal. A
natureza, ou a Criação, é Deus manifesto.
Foi nessa hora, quando mais desejava
ouvi-lo falar, que vieram buscá-lo com urgência. Só sei que lhe
disseram, então:
— Chamam-no com urgência, na
crosta. Dorival quer falar-lhe.
Ele, despedindo-se, partiu. Partiu,
sumindo diante de nós. Eu e Fábio ficamos ruminando idéias,
triturando conceitos e preconceitos. Uma tremenda vontade de fazer
mil perguntas invade ao recém-desencarnado; mas, falta até mesmo o
saber como articulá-las. E tudo se resumiu em pensar mais e falar
menos.
— Que coisa é a evolução lenta
do ser! — disse Fábio, quase num gemido.
— Eu só penso nos meus e nesse
negócio de Espiritismo, de operações, de comunicações...
— Você já está vendo alguma
coisa? Afinal, que é isto, sem ser um pouco daquilo que ele ensina?
Aqui estamos, vivos depois da morte, recolhidos a uma região
parecida com a Terra, inferior, mas de paz; e que dizer da
continuidade da personalidade humana? Dos problemas humanos? Do plano
mental e das realidades de ordem moral?
— O que mais me interessa é o
contato com os que lá ficaram — disse-lhe.
— Leis regulam e determinam tudo —
tornou ele, convicto.
— Ainda hei de falar aos meus, se
Deus quiser.
— Mas não olhe para lado algum...
— falou ele, mais bem humorado, lembrando a observação sábia de
Mesquita — Ou então olhe para tudo, vendo Deus em manifestação
ostensiva.
— Gostaria de avisar minha gente...
Gostaria muito...
E nos chamaram para o almoço. Sim,
para o almoço. Quem quiser pensar nas coisas deste lado, para
fazê-lo bem, faça-o pela lei das duplicatas etéreas. O mais grosso
ou denso, inferior e sofrível, desfaz-se em gamas rumo ao sublimado.
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