ESCRAVOS DO ERRO
Mesquita passou um olho pela casa
toda, assim que a penetramos. Dois, dos cinco meus familiares, não
estavam nos devidos corpos. Um vagueava pela casa e outros dois
dormiam, de fato. Porque pode isso dar-se, naturalmente; isto é, o
agente espiritual sair ou ficar dormindo. Tudo será uma questão de
querer, de poder, ou de estado de alma ocasional, que motive qualquer
dessas razões de gosto e estado.
— Fique, Adroaldo; e estude
qualquer coisa de possível, para o futuro, no sentido de modificar
para melhor o seu ambiente familiar terrícola. Quem tem uma família
carnal, tem credores de bens espirituais, num plano mais denso. Os
familiares são credores nossos, de melhorias de toda ordem. Há uma
lei que transcende ao grau de parentesco carnal, de base moral, que é
a lei de ato, pela qual devemos sempre obrigações de assistência.
Esta, posso dizer com certeza, só cessa mediante a repulsa de uma
das partes; do contrário, repito, cessada a obrigação de ordem
mais temporal, pelo afastamento ocasionado pela dita morte, permanece
a obrigação espiritual por excelência, que pode ser executada por
diferentes meios e modos de atuação. O sentido histórico da vida
de relações, creia, é o mais importante de todos, depois do
respeito que devemos aos fatores superiores da vida, que são os de
ordem divinal.
E partiram, deixando-me no ambiente
familiar terrícola, à vontade.
O que primeiro fiz, foi pôr-me à
altura vibratória daquele filho que vagueava pela casa... Bastou
querer falar-lhe, para me sentir mais pesado, mais limitado. E como
fizesse isso bem à sua frente, perdeu o controle e barafustou corpo
a dentro, acordando sobressaltado. E era já um fracasso, pois não?
Mas fiquei esperando os outros dois. Onde teriam ido? Um era um
menino, muito inteligente; o outro familiar era uma menina, de doze
anos, que revelava grande atração pela música.
Saí para o quintal, para ver como
iam as queridas plantas. Bafejadas pelo luar da madrugada, suas
folhas e flores debulhavam à luz de prata, para cada gota de
orvalho. Com a brisa a mover de leve o folharedo, parecia ver-se um
baile de grinaldas.
Havia transposto a porta, sem pensar
nela; mas aquele filho que se havia refugiado no corpo assim me vira,
para logo mais sair, abriu uma como segunda porta, ou o duplo da
porta ordinária. Estava eu encostado à parede, a meditar nas coisas
da encarnação, como sendo um departamento mais tosco da vida,
quando o vi abrir e fechar uma porta, sem precisar de mover a outra,
a comum ao plano físico. Já havia lido sobre isso, sobre os duplos
gamáticos; e achando interessante, não estranhei.
Tendo permanecido quieto, esperei me
visse e me falasse. Mas ele lá se foi, jardim afora, ganhando a rua
e sumindo por ela. Talvez fosse melhor assim. Tornando ao interior da
casa, fui ter à cabeceira do leito de minha viúva, buscando
falar-lhe; pois ela dormia com o corpo. Orei e fi-la sair; estava
sorridente, coisa que deixou de ser, ao me reconhecer. Pranteou de
cabeça reclinada no meu ombro. Melhor é dizer que pranteamos.
Ângela era mesmo um anjo de bondade a tutelar a casa toda. Sua aura
era bem uma prova de sua marca espiritual. Verde-clara, sinal de bons
dotes conquistados.
Não vi chegar o rapaz.
Quando o dia rompeu por entre as
sombras da noite, mãe e filhos levantaram-se e enfrentaram as lides
normais. Gostei imensamente, até às lágrimas, daqueles envios de
fluidos bons, através de preces que por mim fizeram, antes do café.
— Oremos, agradecendo ao Senhor,
como papai gostava de fazer; e oremos também pelo papai... Hoje me
pareceu ter encontrado com ele... Chorei tanto e acordei chorando...
— disse-lhes Ângela.
E embora me lobrigassem de longe, sei
lá em que lugar do infinito, eu receberia as mensagens mentais,
acompanhadas de santos eflúvios d’alma. Com minhas poucas forças,
coloquei-lhes as mãos sobre as cabeças, uma por vez, desejando-lhes
paz, saúde e trabalho, assim como tinha sido instruído, que são
essas as coisas que se deve pedir, pois o mais decorre de nossa
vontade e capacidade de realização.
E foram-se os mais velhos, ficando em
casa os dois menores. Notei que Ângela havia providenciado costuras,
para que ela e a menina pudessem cooperar para a manutenção da
casa. Arlindo, o mais jovem, dava tratos à cozinha, enquanto mãe e
filha dedilhavam tecidos, linhas e agulhas. Que diriam, que fariam,
como reagiriam, se chegassem a me reconhecer presente? E, apesar de
tudo, fosse qual fosse a impressão, ou o conceito que pudessem vir a
tecer, como me viria a sentir feliz, se isso se desse! Porque,
afinal, depois do transpor da fronteira tumular, o porquê da
imortalidade ganha foros de respeitabilidade máxima, quando se
consegue ultrapassar o limite agrilhoante do sectarismo opressor. Dá
vontade de gritar ao mundo, de pregar aos céus, de informar às
próprias pedras, sobre a imortalidade e a continuidade da
personalidade humana. Dá vontade de avisar, que entre a vida e a
morte a diferença é apenas de relativa densidade física e variação
do meio ambiente. Dizer alto e para sempre, que na vida tudo é
continuidade e progresso lento, que a morte não existe, de fato.
Reconhecendo, portanto, que apenas
por variação na intensidade vibratória é que não nos víamos uns
aos outros, apelei para todos os esforços, no sentido de forçar um
possível colóquio, consciencional pelo menos. Queria me sentissem a
presença e o tremendo afeto que por eles nutria. Mas, lei é lei. A
lei dizia não; e eu não era a lei.
Foi nessa hora que Mesquita chegou,
inopinadamente.
— Perturbado? — disse ele,
estudando-me detidamente.
— Tentava uma ligação, por tênue
que fosse, mas perceptível... Queria que me sentissem a presença...
Ele sorriu, com seu costumeiro e
largo sorriso, onde sempre se descobria mais do que aquilo que dizia.
E fez a sua sempre simplíssima pergunta:
— Não devia ter começado isso um
pouco antes? Teoricamente que fosse, devia ter ensinado aos seus, que
um dia passou pela carne um Homem, o mais hierarquizado do planeta,
Homem esse que cultivou todas as formas de contato com o mundo dos
espíritos, pois expelia aos maus e trocava idéias com os bons.
— Mas fui mal instruído. Bem sabe
disso, amigo Mesquita — fiz questão de dizer-lhe, embora
interrompendo.
—
Antes de mais nada, cada qual deve pensar com a sua própria cabeça,
não sendo menos certo que, de todos os mestres, Cristo é o Mestre.
Por que, então ouvia a uns e a outros e não procurou ouvir a Jesus?
Quem lê o Evangelho encontra, bem como em toda a Bíblia, o fenômeno
espírita por toda a parte. Só teria, em sã razão, de ler e
fazê-lo com inteligência e bom senso.
— Bem poucos sabem ler assim,
senhor Mesquita. O maior número lê segundo as teimas sectárias de
uns e a negociata de outros. Outros lêem segundo a tradição; isto
é, segundo o ignorantismo de séculos ou milênios de recalques.
— Não há dúvidas de que é assim
mesmo — assentiu ele, pondo-se triste.
Depois de meditar qualquer coisa,
enquanto me perdia pelas profundezas de cogitações já não
cabidas, pois para todas as aplicações deve-se respeitar o tempo de
o fazer, emendou ele:
— Mas ninguém deterá a marcha dos
acontecimentos... Vivemos um tempo de transição, de revolução na
ordem das coisas, de renovação de ordem geral; e se não o fizerem
os homens, de boa vontade, por injunção de acontecimentos estranhos
e violentos terão de o fazer. A ordem é superior , ninguém contra
ela poderia lutar e sair vitorioso. O livro sagrado é o da própria
vida, não outro qualquer, em que pese o tacanhismo concepcional das
gerações. E a vida compelirá o homem a se desfazer do jugo seboso
dos anacronismos convencionais e interpretativos. Os dizeres dos
livros foram feitos para o homem e não o homem para os dizeres dos
livros. Os livros passarão, a vida não tem fim. As lições de hoje
se tornarão deficientes amanhã, mas a vida será um crescente
contínuo, em realizações de toda ordem. Eis que, todo aquele que
se detém num livro, para sobre ele levantar noção doutrinária
exclusiva, dentro em pouco se terá medíocre. E que se dirá de quem
faça, por razão qualquer, de um só livro base para interpretações
em geral?
Não terá esse que dar com os
costados mentais numa dessas brincadeiras de fanatismo, tal como está
a Terra farta, pelo que sobra delas em centenas de matizes de credo?
Você ainda terá tempo, se Deus nos conceder a oportunidade, de ver,
de assistir, de medir a extensão do rampeirismo exegético, da
interpretação doentia, feita por pretensos mestres da palavra
evangélica, aí por esse mundaréu religiosista. Não se salvasse a
boa vontade, amigo Adroaldo, e o Evangelho seria a maior fábrica de
estultícies jamais imaginada. E isso, naturalmente, por via das
gratuitas interpretações que lhe dão.
— Como vai indo o movimento
espiritista? Como sabe, não tenho conhecimento algum do seu
desenvolvimento, dadas as minhas aversões, em virtude da escola
recebida.
— O que é da Verdade não lhe
escapa. Portanto, em que pese a oposição dos conchavismos do mundo,
do ronceirismo concepcional, irá ele triunfando. Como já lhe disse,
acontecimentos fortes farão com que a Humanidade se aperceba da
necessidade de melhores aprendizados sobre a realidade da vida e do
Universo. Como se deu com o Cristo, que foi perseguido, preso,
julgado, justiçado e morto pelos que se acreditavam donos da
Verdade, assim se dá com o Consolador, efetivação de Sua radical
promessa; mas, passado o tempo de relutância, espontânea ou
proposital, assim como se impôs pela lógica dos fatos Aquele, do
mesmo modo este o fará. Porque é para o homem e não do homem. Vem
ao homem, de ordem superior, quer tenha de aceitá-lo hoje, amanhã
ou depois de amanhã, compreende?
— Compreendo e aceito, amigo e
senhor Mesquita. E, como não compreender e aceitar agora, que aqui
estou, em mim mesmo sendo um testemunho das afirmações da doutrina
do Consolador? Afinal, o fato não é que deve ser respeitado? Eu
mesmo sou o ato que prova; como, pois, negar justiça ao que é
justo? Durante a vida, na matéria mais densa, pensava como dizia o
padre, nos seus sermões e através do jornalzinho que mensalmente
recebia, que os fenômenos espíritas eram reais, porém de fundo
diabólicos. Agora, sinto-me em dívida perante a Verdade.
E não sei porquê, naquele momento,
uma angústia cruel me invadiu todo, obrigando-me a pedir amparo ao
amigo presente, para não debulhar-me em pranto. Foi o bondoso
Mesquita quem pôs a mão direita sobre minha cabeça, orando com
todo o vigor de sua alma regularmente esclarecida. E senti que o céu
me bafejava, que as vibrações melhores me invadiam por completo,
enlevando-me, fazendo-me sentir a onipresença de Deus. Que estado
maravilhoso! Que vontade de lutar pela melhora dos conhecimentos
humanos! Que desejo de virar de pernas para o ar, com tudo isso de
crônico, de viciado, de idólatra, de atraso, de mercantilista, em
que se chafurda o mundo humano, desde remotíssimos milênios!
— Então — disse-lhe — depende
dos homens o andamento do Espiritismo, e, com ele, os melhores
conhecimentos sobre as leis da vida?
Ele sorriu, inteligentemente, para
dizer entre-dentes:
— Depende dos homens, sim... Mas
dos homens encarnados e desencarnados, pois não é certo que os
homens desencarnados falam e obram, dizendo e operando de modo
deficiente, também viciado, também rampeiro? Homens há, na Terra e
no Céu, por assim dizer, de todos os padrões hierárquicos, de
todos os tons intelectuais. E disso você já teve provas, naquele
Centro onde fomos, antes de trazê-lo para aqui. Como vê, a questão
é de lá e de cá, é nossa e em geral.
— O problema é muito sério... —
comentei, cheio de temores.
— Encare a Humanidade toda, da
carne e do aquém carne, para andar certo, com relação ao problema
de ordem educacional ou evolutiva. Na carne paira um número de
irmãos, milhões de milhões de vezes inferior; o lado sério é
este lado, pois destas regiões é que partem, em maior número, em
intensidades potentíssimas, vibrações inferiores. Se na carne
encontra o encarnado o guante do animalismo, dos instintos, das
tendências inferiores, o que é que não há por aqui, em que estão
estes planos de minoria? Por estas bandas tudo se conta por
multiplicação quase infinita; logo, mais nos toca que a eles, o
problema educativo. E isso implica em trabalhos, coisas que sem
elementos capazes não se pode encetar. Precisamos de milhões de
obreiros! Milhões de obreiros!...
— Mas havendo milhões de milhões
de seres!... — considerei, pensando nos que medram nas regiões
inferiores, nos abismos por ele citados.
— Pois sou um dos que trabalham
para aumentar o número de serviçais na seara do Consolador. A
questão é que nunca há intervenção milagrosa e nem misteriosa.
Precisamos contar com a normalidade, seja para o que for. E,
normalmente, ninguém se faz santo ou conhecedor, pelo simples fato
de ser encarnado, desencarnado, convidado ou não a servir à Causa
do Senhor. A luta é árdua, lá e cá, porque o problema humano, lá
e cá, é um só. Não há salto por que se espere. Tudo marcha de
maneira lenta, muito lenta, em virtude do arraigado mental, do
tradicionalismo defeituoso. O homem não muda, do pior estado mental
para o melhor, pelo simples fato de haver melhor estado mental para
atingir; o homem é um escravo, em sua formação mental, pela
cristalização de suas próprias maquinações sectárias ou
concepcionais. Quando avança, em noventa e nove por cento das vezes,
é porque um chuço o tangeu. No mais, dorme sobre o espinheiro da
ignorância, esquecido de que glórias indefiníveis lhe aguardam o
desenvolvimento.
Aquietou-se por uns segundos e
volveu:
— Sem contar com os que vivem nos
países astrais inferiores, calcule o número dos que vivem
paralelamente ao homem encarnado, caminhando juntamente com ele,
pelas vidas do pensamento menos edificante, das ações até mesmo
tenebrosas. É de tal modo complexo o problema, que a muitos
estudiosos do Espiritismo não cabe o imaginar sobre aqueles que,
sendo desencarnados e tendo disso conhecimento, de si mesmos não
dêem esforços no sentido de melhorar o padrão. Esteja certo disso;
isto é, de que na carne existe muita gente bem mais vantajosamente
intencionada do que por aqui nos planos mais densos, onde mesmo na
consciência da continuidade da vida, aplica-se a criatura às piores
proposições.
E perorando por isto ou aquilo, as
horas iam passando.
Lembrei-me daquela ponte sobre o
abismo, por me parecer que lhe sentia a profundidade, em todos os
sentidos. Queria perguntar-lhe umas tantas coisas, quando foram
chegando os filhos, que vinham para o almoço, cada um querendo
contar alguma coisa. Mas não ficou neles, somente, o caso das
pessoas presentes; uma moça chegou, também, sorridente e feliz, de
quem enorme distância hierárquica nos separava, pois Mesquita
também lhe era bem inferior, pelo que se podia concluir, facilmente.
— É com prazer que me apresento;
chamo-me Alva e sou amiga de alguns séculos de Ângela. Fez ela, por
mim, então, tudo quanto pode, criando-me e dando-me a formação
moral que valeu muito. Fui enjeitada por minha mãe, que me largou na
porta de sua casa. Ângela, que então se chamava Dolores, deu-me
tudo o de que poderia carecer uma criança naquela idade. E deu-me
tudo o mais, quando menina, quando moça, quando esposa e mãe... Ela
foi o meu anjo tutelar naquela vida, razão por que jamais esqueci.
Sempre que volto ao espaço, uma vez reintegrada nos conhecimentos do
passado, minha alma volta-se para ela. Procuro-a pelos canais
competentes; e, encontrando-a, jamais deixo de visitá-la, quando
possa. Essa é a razão por que estou aqui, meus senhores.
Estávamos conversando com Alva,
quando chegaram, também, os espíritos que haviam sido avós de
Ângela, noutra vida. Apresentaram-se e ficamos muito amigos. Pouco
depois, meu avô paterno também chegava, rejuvenescido de muito,
alegre como era o seu natural. E a prosa girou em torno do meu
desencarne e destino funcional. Mesquita disse que tinha, sobre mim,
tudo programado, de ordem superior. E Alva ofertou-me seus préstimos,
o mesmo fazendo os outros. Alva era, porém, muito superior aos
outros, pelo que se insinuava, espiritualmente, de um modo estranho,
penetrando os recessos de nossas almas, com os seus dotes de
compreensão e elevado amor.
Ao cabo de algum tempo, cada qual foi
para sua banda, tendo ficado eu e Mesquita, por mais um pouco. Logo
mais, também nos fomos. Osculei em lágrimas, a cada um dos meus,
saindo a caminhar vagarosamente.
Foi Mesquita que me convidou a um
passeio pela Terra. Fomos onde quisemos ir, detendo-nos ou não, onde
bem entendemos. Como é pequenino o nosso planeta! Com o querer
pensar, e locomover, não há distância, tudo é já e muito
pequeno. A morte, amigos, é a máxima bênção, porque devolve ao
espírito o que lhe é por natureza. Mas é preciso morrer bem, é
claro. Não digo que o tenha feito no melhor dos estados; mas, outros
o fazem piormente... E outros, melhormente...
ÍNICIO - CAPA
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