DEVOLVIDO AO TRABALHO
Fazia já bem tempo que havia deixado
a Casa de Recuperação, quando numa de suas visitas, disse-me Alva:
— Mesquita devia ir, também; mas
surgiram à última hora, dificuldades imprevistas. Iremos nós, como
estava combinado, assistir a uma conferência, na crosta, feita por
um irmão encarnado. Como já teve a oportunidade de ver, ou rever a
história do homem sobre a Terra, terá agora a oportunidade de
ouvir, da boca de um encarnado, uma exposição resumida da mesma
história. Como já ouviu dizer, trabalhamos sob a égide de Jesus,
no plano geral; mas, no quadro das ramificações obrigatórias, das
funções executivas, os trabalhos obedecem à orientação de
grandes oficiais, de subalternos categorizados. Assim, pois, os
serviços em torno à unificação da fé, por compreensão e não
por mística piegas, estão afetos a quem de direito, por outorga da
própria Diretoria Planetária.
— Compreendo perfeitamente, amiga
Alva, que a Terra vale, para efeito de administração, por um país
maiorzinho e bem mais justamente administrado, do que os países
pequeninos de nós bem conhecidos. E que assim como os países da
Terra possuem seus chefes-supremos, seus ministros, seus
governadores, seus secretários, seus chefes de repartições, etc.
também um planeta os possui, é claro, e em bem melhores e maiores
expressões.
— Muito bem. Pois iremos nós três:
você, Cristina e eu. Esteja pronto à hora de costume.
E deixou-me a meditar. Mas a meditar
com outro conhecimento de causa, que não aquele dos primeiros dias,
quando tudo era confuso. Agora, sabia bem que tudo é por ordem, por
hierarquia, por gamas vibratórias e administrativas, havendo direção
para tudo, de dentro para fora e de fora para dentro. Tudo simples,
natural, altamente respeitável.
Pelas seis e pouco, acompanhado de
Fábio, entrou Mesquita. Entrou, devo dizer, para a casa onde então
passei a habitar, residência de velho amigo. Porque, afinal, por
obrigação funcional ou o quer seja, não quis e não poderia, de
fato, ter ido para regiões outras, onde tivesse parentes radicados.
Foi imperioso ficar em lugar propício para certo desenvolvimento de
atividade. E tudo corria bem, trazendo-me o serviço em curso, a
todos os momentos, oportunidades de felizes amizades e ricos
aprendizados.
Sorriso largo à vista, saudou-me
Mesquita:
— Boa noite, Adroaldo. E boa noite
com todos os “rr” e “ss”...
Como se tivesse querido aludir às
concepções de certos credos do mundo, que presumem haver e teimam
que há, de fato, uma tremenda ou total separação entre tudo o que
é dito da Terra e tido como do Céu, ratifiquei:
— Boa noite, com todos os “rr”
e “ss”, não há dúvida alguma. Mas sabemos que os nossos
“erres” e “esses” possuem encontros inimagináveis, quando se
trata de nossas noites.
— Quero lhe dizer, que, apesar de
tudo isto ser imensamente belo, profundamente deslumbrante,
enternecidamente adorável, tenho saudades das noites de minha terra!
O Ceará, com suas noites claras e seus mares bravios, parece que
surgiu, de um sonho do próprio Deus!... Demais, a Terra, por si só,
sem o desmazelo humano, sem a barbárie intelectualizada, apesar de
suas convulsões telúricas, dos extremismos de suas erupções
cataclismáticas, não deixaria jamais de ser um poema vivo,
palpitante, a atrair perenemente os sentidos do homem superior, da
alma capaz de sondar, na pujança dos seus arrebóis, na embaladora
doçura dos seus crepúsculos, o porquê da própria vida! Não
existe trecho de estrada, galho de árvore, pétala de flor, regato
serpeante, que não tenha herdado, pelo menos uma só bênção das
musas. A dor, o amor, a alegria, a tormenta, o dia, a noite, o riso,
a lágrima, o belo, o feio, a ignorância e a sabedoria, que coisas
são, em conjunto, sem ser o motivo de todas as sinfonias, a alma de
todas as canções, a base de tudo o que se possa argumentar? Por
causa da Terra, amigos, as inteligências mais belas, os cérebros
mais atilados, os corações mais amantes, sonharam com o que de mais
sublime possuem os céus! Jesus, em Sua grandeza, mandou olhar para
os lírios do campo e para as aves do céu. Por que, meus amigos? Por
causa da singeleza, por vias das tremendas lições que a
simplicidade encerra e prodigaliza.
Alva entrou, ouviu um pouco e
sorrindo lhe ciciou aos ouvidos:
— Que cheirinho de poesia anda por
aqui hoje!...
— Estamos na hora? — indagou
Mesquita, volvendo-se.
— O senhor também vai? — quis eu
saber, pois estando presente e dizendo Alva o que disse, supus ter
havido qualquer nova deliberação.
— Vou para a crosta, mas cumprir
outras ordens. Vou para aquele Centro onde fomos ver aquelas
operações espirituais... Lembra-se do caso do Fábio?
— Lembro-me perfeitamente.
— Temos ordens a transmitir aos
guias daqueles serviços — informou.
—
É interessante — considerei, imaginando no que se teria passado,
desde aquela noite, quando bem má impressão tais serviços nos
causaram, pelo inferiorismo em geral ali reinante.
Notando-me a curiosidade construtiva,
tornou ele, em resumida explicação:
— Expus aos dirigentes o meu
parecer. E a resposta levo-a, para, no caso de aceitação do alvitre
superior, contribuir com elementos de melhoria em geral.
— A resposta está sendo endereçada
aos guias do Centro?
— E os guias falarão aos seus
imediatos, que são os trabalhadores encarnados. Não ficaria bem, em
tal caso, falar diretamente aos encarnados. Afinal, se outra fosse a
ordem intelecto-moral reinante, da parte dos encarnados, outra seria
a ambiência do plano astral. Falaremos, pois, àqueles que são o
reflexo do pensar ambiental. Como deve ter lido, somos atraídos ou
repelidos, pelo modo de pensar e sentir dos que na carne se reúnem.
Eles é que possuem a chave, pelo imenso poderio eletromagnético
cujos pensamentos fazem intervir.
— E se não aceitarem a oferta
superior?
— Continuarão como estão —
respondeu, fazendo significativo gesto de ombros.
— Não seria justo impor...
Como que antecipando-se ao meu dizer,
sorriu inteligentemente e salientou:
— Nada disso, pois não são de
modo algum maldosos; falta-lhes superioridade; falta-lhes evolvimento
em hierarquia, doutrina e técnica. E quem para lá se encaminhar,
pouco mais ou menos, também estará por essas paragens de
merecimentos. Em aceitando, que terão de fazer, sem ser abandonar
certas práticas que a todos agradam, que são os ritualismos? E crê
que aceitarão?
— Então — intervi — nem
conviria aconselhar!
— Enquanto se tratar de lidar com
elementos evolutíveis, precisamente por isso, convém tentar.
— Dentre os encarnados?
—
De ambos os lados. A lei é melhorar ou subir sempre, avançar
sempre, conquistar ao infinito as melhores expressões em performace
edificante. Nunca se deve pensar que já se tem ou sabe tudo,
estabelecendo o regime de círculo vicioso. Tampouco, e saliente bem
isto, deve-se imaginar na obrigação de homogeneidade ambiental; a
homogeneidade, para ser construtiva, só sendo de ordem relativa. De
resto, precisas são as múltiplas concepções, desde que ungidas de
santos objetivos. E queira ou não nossa mente admitir isso, haverá
sempre um segundo modo, pelo menos um segundo modo de se entender uma
primeira ou última idéia. Lá, pois, apesar do inferiorismo parecer
geral, gente haverá com vontade e preparada para avançar um pouco.
Essa gente, portanto, ou forçará no sentido de renovação de meios
e processos, ou tomará rumos outros, indo frutificar melhor mais
para a frente.
— E estamos na hora, pois havemos
de ter tempo para mais prosa por lá — observou Alva, tomando o
ancião pelo braço e dizendo-lhe fosse chamar Cristina, que se
achava pelo interior da residência.
— Morrer, bem o sabia, não
significa terminar empreitadas. Mas vejo que o problema humano, por
aqui, torna-se múltiplo em detalhes e características
interessantes. Sobretudo, considero um ponto de ordem ética:
enquanto na carne julgamos que a morte nos separará de certas
obrigações, criando uma distância, dispondo barreiras, aqui viemos
encontrar uma ordem em todas as coisas e propósitos, pois a unidade
nas operações firma-se de modo espetaculoso. Há, compreende-se
facilmente, aumento de cuidados em geral, de base educativa, de fundo
orientador, num sentido de forçamento universal e contínuo, embora
ressalvando o respeito às possibilidades pessoais.
Em ouvindo Fábio assim falar, quis
saber mais de perto se qualquer coisa de ordem íntima o ressentia,
qualquer coisa toda pessoal. Explicou-me:
— Você também é marinheiro de
primeira viagem. Não sente em si uma opressão do meio, uma como que
coerção fantástica, principalmente no sentido intelectual da vida?
Não lhe parece que nos estão a reclamar alguma coisa?
— Fábio, você bem sabe que eu era
católico, e que um católico é apenas um crente empírico, tudo
ignorando sobre o realismo da vida de extratumba. Como poderia eu,
crente na errônea concepção de uma só vida, na salvação por
encomendas ritualísticas, no realismo dos conceitos de céu, inferno
e purgatório como territórios, como poderia eu, agora, portanto,
não me encontrar em perene encantamento? Estou no céu, estou bem, é
o que lhe devo dizer. Nada me oprime, tudo me enleva. Sinto-me uno
com Deus, assim como diz no catecismo que logo de entrada nos deram
para ler. E quereria eu mais do que isso? Quero é certo, pois assim
determina a lei; mas, por ora sinto-me no céu.
Fábio ficou meio desconcertado,
cismático, a observar-me bem. Coisas enuviantes deviam estar a lhe
entravar o ingresso em melhor estado de estar. Mas, que poderia eu
fazer, ou dizer, se vultos de outro coturno silenciavam a seu
respeito, a respeito do seu estado de alma? Fiz-lhe ver, em palavras,
enquanto Mesquita, Alva e outros haviam ido buscar Cristina, que bom
seria falasse claramente com algum chefe. Havia um porquê qualquer,
sem dúvida, por resolver, sendo que os elementos e meios não deviam
estar longe. Ele, então, falou-me assentindo; iria, assim lhe
calhasse de oportuno, escancarar a alma. Para mim, sabia que qualquer
deles estava a par de tudo; mas que a iniciativa devia ser dele, por
ser dessas coisas cuja ordem pertence à deliberação individual.
Quando vieram do interior da casa
aqueles que haviam ido à cata de Cristina, Fábio esboçava leve
sorriso, coisa em si ainda bem rara.
— São sete e trinta — avisou
Alva.
Com algumas recomendações de
Mesquita, partimos deixando-o a sós com Fábio. Isto é, partimos em
cinco pessoas, inclusive Alva e Cristina. Com minhas poucas
probabilidades de êxito, fazia força mental no propósito de que
Fábio, uma vez a sós com Mesquita, dissesse do que lhe ia pelo
mundo interno. Talvez por simples questão de fraternidade, quem sabe
por razões históricas de mim não lembradas, o certo é que aquela
contínua tristeza de Fábio me atormentava.
ÍNICIO - CAPA
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