UM DESPERTAR
Haverá sempre um estado de estar
para suceder a outro, na vida ou na morte, no plano físico ou nos
infindos matizes do extrafísico. E isso foi o que comigo se deu. Ser
o que se é, evolver, nascer, morrer, renascer, morrer de novo e de
novo despertar para o realismo supremo que é viver sempre, isso
nunca será novidade. Quem teria sido o primeiro a ficar sujeito a
tudo isso? Houve, em algum tempo qualquer, esse primeiro? Quando?
Onde? Como?
Acordei cedo, um dia, em lugar
estranho. Ao redor de mim a ninguém via que me fosse familiar ou
achegado por amizade. Contudo, todos me cumprimentaram, sorridentes,
felizes e comunicativos. Falaram-me. Falaram-me com extrema bondade,
em tom familiar, como se fossem desdobramentos de amizades as mais
puras, como se constituíssem o extrato das mais íntimas devoções
fraternais.
— De onde chegaram os senhores?...
Não me lembro de os haver encontrado em lugar algum! — foi o que
pude dizer-lhes, de momento, estranhando um pouco.
— Você, amigo, é que acaba de
acordar para o mundo espiritual... Seu corpo mais denso ficou na
Terra, para ser devolvido ao meio natural... E queremos que
compreenda isso como um fenômeno natural, pois morrer é comum e
despertar para este plano da vida, também — respondeu-me o mais
avizinhado, um senhor de meia idade e que ostentava largo e
prazenteiro sorriso no simpático semblante.
Depois de fitar-me bem, de medir até
onde podia sentir que tinha ainda um corpo, tornei à fala, um tanto
admirado da acometida sorte:
— De fato, amigo, tenho um corpo...
E não esperava morrer tão cedo!...
— Raciocina, e ama ao que é do
Senhor. Ter mais ou menos idade não significa coisa alguma em face
das determinações superiores. Importa é respeitar o fato.
Calou quem assim me falava. Pensou um
pouco e emendou num convite:
– Quer levantar-se?... Pode fazê-lo
com o camisolão que veste. Está numa casa de recuperação, num
lugar, portanto, onde pode estar à vontade.
E como fizesse eu menção de
levantar, deu-me a mão. Sentia-me o mesmo, mas bem mais leve, assim
como quando se toma regular quantia de sedativo. O cansaço físico
ainda o tinha; e falei-lhe na depressão cardíaca. Respondeu-me que
nada de extraordinário havia em tudo isso.
— Para aqui vêm todos os estados
de estar. Apenas, uns alcançam mais, outros menos. Há lugares ou
regiões, para todos os merecimentos ou graus de merecimentos. Você
veio para aqui, por exemplo, porque fez por isso durante sua
encarnação; e também porque saiu da região pouco acima, para ir à
encarnação. Se não foi melhor, como poderia ter sido, também não
fez o pior... Afinal, de uma sortida não se poderia fazer tudo.
— Então, senhor, essa coisa de
reencarnar é verdade?... — perguntei.
— Se é verdade ou mentira, isso é
com Deus; porque nós conhecemos de fato, como lei natural. E por lei
natural temos o que é fundamental; isto é, aquilo que independe da
nossa vontade.
— E eu venho da reencarnação!...
— tornei, com mil coisas a me pontilhar o cérebro.
— Você vem da desencarnação,
como último acontecimento em sua vida. Pelo menos, caro Adroaldo, o
que se passou depois foi isso que acaba de fazer, que é o despertar
entre nós, nesta zona do astral da Terra, neste céu da Terra.
E tanta coisa me invadia o campo
mental, que, com custo discernia o que mais seria conveniente pensar
seriamente e de pronto indagar. E fui falando, mais ou menos, como
pude.
— Que maravilha!... Estou no céu e
tudo é como se fosse na Terra!
— Estamos numa zona inferior do
céu... Por isso é que tudo se parece demais com a Terra. À medida
que as zonas sejam as mais afastadas, tudo vai-se sublimando de modo
tal, caro amigo, que nem se chega a poder descrever. Nas zonas
interestelares, por exemplo, onde vivem os seres mais purificados,
continua a haver parecença com a Terra, é certo; mas de modo tão
sublime, que com o conhecimento que temos, não lhe podemos dar
guarida em saberes e explicações.
— Pensei que o céu fosse uma
unidade, separado apenas do inferno e do purgatório, que, também,
fossem unos em si mesmos.
— Não é assim, pelo fato de não
o ser. Como, porém, representa o que quer Deus, tudo está muito bem
e certíssimo. Demais, Adroaldo, como ficaríamos nós, por exemplo,
que estamos situados em grau hierárquico que não é alto e nem
baixo? E os outros matizes de ser e estar em que se reparte a
demografia terrenal, seja no que diz respeito aos da carne e aos
destes planos? Há que conceber, portanto, a necessidade e justeza do
fracionamento existente, por haver que respeitar, na Justiça
Suprema, o saber e poder dar, a cada um como merecer. Para infinitos
graus de merecimento, portanto, tem que haver infindos postos de
estágio.
— Sabe o meu nome, pois não? E o
seu, qual é, meu senhor? — lembrei-me de perguntar, pois já havia
pronunciado meu nome por duas vezes.
E ele disse-me:
— Tenho sua documentação em mãos;
fui encarregado de socorrê-lo. Meu nome, ou como todos me chamam, é
pelo sobrenome Mesquita. Trate-me assim, dispondo desta amizade à
vontade, pois aqui nos sentimos bem só quando podemos ser úteis uns
aos outros...
Achei estranho, num repente, o fato
de ter passado por nós uma maca, carregada por dois homens, sobre a
qual alguém ia, coberto de tudo. Falei a Mesquita e sua resposta foi
esta:
— Você também veio assim. Aliás,
cada um vem como vem ou é socorrido da melhor forma possível. E é
bom que possa ser assim, pois outros há que não podem ser
socorridos, migrando para tristes países ou continuando a perambular
pelo plano da carne, a sofrer e a produzir sofrimentos.
— Que coisa estranha é a morte! Eu
jamais suportaria isso lá no mundo... O homem morrer e ser carregado
numa padiola!... Meu Deus, até onde estão Tuas leis acima do poder
computante do homem carnal? Carnal?... Mas se tenho a minha carne, se
todos a têm?...
E Mesquita retrocedeu ao que dizia,
propositalmente:
— Aqui só é feliz quem sente que
está sendo útil. Quero que medite nesta regra de conduta e sentido
de auto-emprego, porque o mais breve possível queremos contar
consigo para trabalhos em conjunto. As nossas concepções só são
boas e produzem bons frutos quando representam veiculação de
superiores desígnios. Ser útil é viver a lei superior de
solidariedade ativa, por compreender que o Amor é das leis a mais
forte.
— Não ficaria melhor dizer que o
Amor é a síntese das leis, amigo Mesquita?
— Não vale a pena sintetizar
tanto. Afinal, uma lei científica é uma lei, da mesma forma como
uma lei filosófica, ou de qualquer outro ramo do pensamento, ou de
qualquer matiz departamentário da vida. Deixemos os extremismos
simplórios lá para o mundo mais formal, aplicando aqui os saberes e
poderes, de conformidade com as posses do presente. Na Terra, fala-se
demais e age-se de menos. Quem mais fala é muita vez quem menos vive
ou dá exemplo salutar. Repare nos donos de religião, nos estatutos
que levantam, confrontando com a vida que levam. Quando não é o
próprio estatuto que se alicerça no erro, são os seus pretensos
executores os que se desmantelam nos atos da vida. E assim por
diante...
— Quem foi esse que passou na
padiola? — fiz por saber, movido por não sei que curiosidade,
cortando-lhe o seguimento da peroração.
— Foi um adepto do espiritismo.
Viveu bem seus últimos tempos de vida, granjeando o direito de ser
logo recolhido, medicado e instruído assim como no seu caso...
— Nesta cidade do céu também se
misturam os credos?!...
— Para Deus, posso garantir-lhe,
não existe a acepção de credo. Basta que o homem se orne, de fato,
com os galardões da vera decência. Aliás, já disse outro dia um
de nossos pregadores, que tendo o Cristo resumido os Dez Mandamentos
em dois, se tornasse ao mundo das formas, de novo, reduziria a um só,
que é o ser veramente decente. Porque, sem decência, caro amigo,
nada vale andar com rótulos e títulos quaisquer, cheirem lá a que
credo cheirem. Jesus recomendou o — “amai-vos uns aos outros”—
como medida de ordem geral, para efeito de aplicação na vida de
relações, por saber que sem decência não adiantam os coros em
procissão de todos os convencionalismos ou mandamentos de homens.
Para a paz, faz-se preciso a moral; e para a autoridade, preciso se
faz a sabedoria, nos diferentes ramos do saber. Pieguismos
religiosistas, moral postiça, nada resolvem. Muito menos ainda,
presumidas prerrogativas sectárias. Quem livra é a Verdade, pois o
religamento, só pela Verdade poderá ser feito. Como de si poderá
deduzir, Adroaldo, veio encontrar aqui um mundo de que o seu credo
nunca lhe deu informe algum. E como poderia a ignorância constituir
medida de sabedoria? Como falar em religião verdadeira se, à luz
dos fatos, refuta ao que é de Deus e proclama ao que sai de seus
conchavos interesseiros? E mesmo que haja vantagem, em fundo
científico, portanto em poder informativo, de um credo sobre outro,
que credo garantiria a conduta pessoal do seu adepto? Cada qual tem
seu lastro cármico, seu passado e suas obrigações adquiridas;
logo, pertencer a um credo nada significaria, jamais, passar por cima
de tão respeitáveis leis. O muito que uma religião tem a fazer,
amigo Adroaldo, é informar bem; e não informa bem quem cuida em
sectarizar a humanidade. Para uma religião ser boa portanto, não
deve ser à base de clerezia; porque a clerezia é sempre um meio de
vida. E quem faz das coisas do espírito um meio de vida, não pode
falar como verdadeiro discípulo da Verdade.
Íamos caminhando, dobrando esquinas
de corredores e conversando. Num repente, lá na ponta de um deles,
me pareceu ver alguém do conhecimento. Tornei Mesquita a par da
impressão recebida, dizendo o nome do tal homem, que também vestia
a camisola dos internados.
— É ele mesmo... Fábio
desencarnou faz três dias.
— Ele era espiritista... Pelo
visto, sabendo mais, não obteve melhora sobre mim que, agora,
reconheço, sabia menos.
—
Não discuto sobre crenças, amigo Adroaldo. Mas acabo de dizer que
cada um arrasta consigo o seu carma, as suas injunções do passado
vivido. Logo, o “como está” não poderia ser aferido de pronto,
sem cuidadoso exame. O como já
esteve é que nos devia interessar mais, para efeito de estudo.
Depois disso, cumpre dizer que o Espiritismo, como o Cristianismo
reposto no lugar, à base da eclosão mediúnica do Pentecostes, e
tendo por moral a do mesmo Evangelho, não dispensa quitutes
favoritistas, não distribui promessas vãs, recomendando, apenas,
pelas verdades que expõe e ensina, a que cada um se edifique pelas
obras, não olvidando o afirmar que o mais saber importa em maior
responsabilidade. O Espiritismo Cristão é escola de Verdade. Ensina
certo e puramente; não pretende tolher, em quem quer que seja, o
sagrado direito de livre- arbítrio. Por ser escola de Verdade, não
comporta clerezia, não tem formalismos, não se compra e nem se
vende, a exemplo do que fez o Cristo durante sua passagem pela carne,
nas ruas, nas praças e nos desertos da Palestina. O lado religioso,
o poder de religação mental e moral que confere ou facilita, isso
fica por conta do seu praticante o tornar mais ou menos intenso. Como
vê, Adroaldo, não possui o Espiritismo uma bilheteria, ou guichê,
onde estejam à venda entradas para o céu. Sua função é informar;
e o mais cumpre ao sabedor o que fazer com o que sabe. Nem foi outra
a promessa do Cristo, pois disse:
“Mas o
Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu
nome, ele vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo
o que vos tenho dito” - João, 14,26.
Nenhuma palavra vazada no dia de
Pentecostes, pela boca dos Apóstolos e dezenas de outras pessoas,
(pois foram quase cinqüenta os médiuns que se prestaram para o
início da era mediúnica mais intensa já vivida pela humanidade),
nenhuma palavra, disse, foi retida e conservada, para efeito de
julgamento dos pósteros; mas, pode estar certo, amigo Adroaldo, que
aquilo que os espíritos comunicantes disseram, pela boca daqueles
médiuns, não constitui promessa de céu gratuito a quem lhes desse
crédito doutrinário, apenas. É preciso saber e praticar, para se
alcançar o objetivo colimado. De informar, de acordo com a promessa
de Cristo, encarrega-se o Consolador; mas pela execução responde o
sabedor, mais ninguém.
— Poderia eu falar com Fábio? —
pedi.
— Claro. Vamos a ele, que deve
ter-se ido sentar num banco de jardim.
Morte, céu, doença, banco de
jardim, etc., Santo Deus! Como poderia este pobre filho Teu, emanação
Tua ou o que seja, admitir tudo isso lá no mundo, havendo recebido,
como de fato recebeu, instruções só formais, sem Revelação, sem
progresso? Como, Senhor, ser culpado?
E ia assim pensando, em solilóquio,
quando Mesquita invadiu minha seara mental, dizendo:
— Por que não quer ser
responsável? Afinal, antes de criticar quem era espiritista, ou quem
lesse um livro doutrinário, por que não buscou saber alguma coisa?
A que título tinha a sua cabeça e responsabilidade?
— A Igreja proíbe faça-se isso,
pelo menos, amigo Mesquita, dei ouvido à Igreja. Ela é a
responsável. Confiei na sua infalibilidade.
— Responsabilidade, nesse caso,
cabe a quem manda e a quem executa. O dever é de cada um pensar com
a sua própria cabeça. Com as qualidades já despertas em outras
vidas, se tivesse enxergado a responsabilidade de conhecedor do
Consolador, e praticante, por certo que viria para aqui, com a coroa
que orna a todo aquele que trabalhou pela evolução dos irmãos e da
humanidade em geral. Não digo tenha perdido muito; mas perdeu ótima
oportunidade. Quanto à proibição da igreja romana, ela só pode
falar em seu nome; nunca, porém, em nome da Verdade. Também o clero
levítico proibiu o Cristo de fazer o que devia e fez; mas não
encontrou Nele guarida a voz do mundo, porque a da Verdade lhe soou
mais alto. É preciso saber ouvir, caro amigo, para que se não dê
ouvidos ao que é corrupto e comprometedor. Convém não pensar
segundo a tradição dos cleros.
— É muito sábio, amigo Mesquita.
Concordo consigo. E onde terá ido esconder-se o Fábio?
— Lá está ele, debaixo daquela
frondosa árvore. É seu lugar favorito.
— Também temos magnólias aqui?...
— indaguei, ao observar a árvore.
Mesquita sorriu o seu simpático e
largo sorriso. Calei-me, porque senti que ele a isso correspondeu. E
marchamos ao Fábio de minha velha amizade, ao homem a quem muito
ridicularizei, oculta e ostensivamente, porque tinha a mania de dizer
que conversava com os mortos, com aqueles que o pároco dizia serem
diabos a desencaminhar as gentes.
Não sabia que aquele encontro me
fosse conduzir a um pranto feliz. Mas assim é que sucedeu. Ao
defrontar Fábio, frente a frente no mundo dos mortos, minha alma
como que aflorou à tona de mim mesmo. Que alegria! Que compenetração
das coisas de Deus! Choramos os dois, abraçados, numa infusão de
amizade intensa e ungida de celestes bênçãos. Quando pudemos
conversar, parece que aquelas lágrimas haviam anteriormente dito ou
significado tudo, só dissemos coisas da Terra, do ontem da vida, dos
familiares lá ficados.
E comprometemo-nos a novos e felizes
encontros.
ÍNICIO - CAPA
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