LENDO O MEU RELATÓRIO
Não é agravante, para mim, o ter
desencarnado, nesta última vez, nas condições em que o fiz; pois
nada tinha a agravar, por nada ter tido de importante em outras
vidas, a me aureolar a fronte de vivedor simples e humilde. Conheço
quem não possa dizer o mesmo, por haver esbanjado bens internos em
experiências mal orientadas; quem borrifou de fiasco, nova migração
pela carne, depois de ter dado de si, em outros tempos, provas de
belas realizações. É que, como ninguém se completa de uma só
vez, tendo de experimentar situações estas e aquelas, para efeito
de complemento, esbarra em ângulos menos eficientes de sua própria
organização. Há mesmo, em todos nós que ainda somos pobres de
virtudes despertas, pontos fracos, regiões morais menos sólidas.
Cumpre, portanto, ao programar nova abordagem à carne, fazê-lo com
prudência, não excedendo nos exageros da auto-suficiência. É
melhor andar devagar e seguramente.
Não sei o porquê, mas foi Alva quem
me veio trazer, um dia, meu relatório. Era e ainda deve ser, devendo
estar no departamento competente, um calhamaço em ordem, limpo, bem
guarnecido. Não tinha, nem seria preciso ter, como me disseram,
referências sobre os primeiros lances do espírito consciente, ou de
entrada imediata no reino hominal. Começou, mais ou menos, e com
citações mui ligeiras, no tempo da vinda da raça adâmica, há
pouco mais ou menos quinhentos mil anos atrás. Não sou adamita, não
vim barrado de outro plano, sou evita, sou da raça primitiva como
muita gente o é, pois deveis saber que nos compomos, os habitantes
da Terra em geral, da carne e dos países astrais, de uma infusão de
advindos e primitivos, rareando muito os emigrados voluntários de
outros planetas.
Há quem pense muito, sei-o agora,
nessa questão; isto é, em ir para melhor casa cósmica, pensando
que, para encontrar céus lindos, indizíveis em esplendor, seja
preciso deixar a Terra. Que erro grosseiro! Pois, nem cismando coisas
ditas sonhadoras, e que em si contivessem os néctares dos sonhos,
poderia dizer alguém encarnado, ou habitante dos países inferiores
do astral, daquilo que a Terra comporta, em suas zonas mais
afastadas, lá para onde não consegue atingir o vibrar inferior das
camadas mais próximas do centro.
Porque a Terra é um todo, sendo que,
quanto mais para o centro geral, tanto mais inferior, na direta
proporção em que, quanto mais para fora, mais divinizados os
ambientes são. Descobre o ser, os seus bens inatos, os seus dotes de
emanação divina que é, para certificar-se do que afirmamos aqui,
de onde o plano geral se torna de fácil compreensão. A Terra
comporta todos os céus desejáveis. Que ninguém perca tempo em
pensar ir para longe, porque o mais difícil é atingir os cimos dela
mesma. Nos seus extremos domínios, possui a casa cósmica dirigida
pelo Diretor Planetário, ambientes subidíssimos. Não sei isso
apenas por estudos diagramáticos que nos são aqui oferecidos;
experimentei o prazer de saber de fato, em virtude de escalada
organizadora, como prêmio, e onde Alva era uma das dirigentes da
minúscula caravana.
Apenas, é bom considerar, a muita
luz cega aos morcegos... Em nossa organização característica,
existem três pontos essenciais — o inferior, o ótimo e o
superior. O inferior atingimos pela degradação, e não sei até
onde possa ir, sem ser que atinge o revolvimento das formas animais
primitivas por onde transitamos em simplicidade, o que então era
normal. O ótimo é aquele estado normal, como o meu, no presente,
que estou em equilíbrio entre merecimento e o meio ambiente. E o
superior, que é o forçamento do ótimo, coisa que cansa, pois
constitui um sustentar altura vibratória não comum, não ordinária.
As alturas cansam muito, sendo normal que, nos extremos do
forçamento, não podemos manter o posto por nós mesmos, sendo
necessária a intervenção de agentes mais categorizados. Há,
porém, para o inferior e o superior, campo acessível, onde, sem
prejuízo, se pode viver e servir. Nunca deixaria de haver um campo
de flexão, para cima e para baixo, em tons e matizes. Uns sobem para
estudar, para encetar aprimoramentos, principalmente nos casos de
encarnações missionárias em vista. Outros, abnegados, descem para
se tornarem mais úteis, para estarem ao pé daqueles a quem
pretendem auxiliar. Os nossos planos estão forros destes tais.
Mas eu dizia de mim mesmo, como
evita, como elemento da raça-mãe, daquela raça que ofereceu
encarnação à legião adâmica, faz mais ou menos quinhentos mil
anos, segundo dizem sábios destes lados, através de seus livros e
suas palestras.
Que coisas andei a fazer, então, por
todo esse tempo, no seio do cardume humano, na Terra como se fora em
qualquer outro mundo da mesma categoria? Vivi e fui, como acontece
com todos, preparando meu caráter pessoal. Porque ser uma
individualidade distinta, à parte das demais partes, nada demais é;
o principal é a organização do caráter, a feitura do próprio eu
característico. E demorei-me desanimado, porventura? Não, pois
milhões de anos temos vivido, nos planos inferiores, de antes do
mineral, nas gamas hierárquicas incontáveis dos reinos anteriores
ao reino animal. E como atravessamos o reino animal? De um salto,
talvez? Não, pois na Obra Divina, no Deus Manifesto, não há
saltos, tudo é paulatino, lento, progressivamente lento.
Revi, também, através de
aparelhagens próprias, vidas e vidas, nas eras que se foram, nos
continentes que já não existem, no seio de raças que se
transfundiram. Adorei a um mesmo Deus por fanatismos vários. Ofendi
a um mesmo Deus, pelas razões que também hoje são usadas pelas
diferentes religiões, nos seus entrechoques sectários. Defendi
cores, bandeiras, clãs, credos. Matei e fui morto. Lá para trás,
não muito longe, comi e fugi comido.
Assim como hoje o fazem milhões, na
carne e fora dela, ao invés de adorar a Deus, pela decência de
conduta, bajulei, lambi, adulei, chaleirei. E não sei se o farei
ainda, pois em volvendo à carne, muito mais fácil é temer e
chaleirar a Deus, fazer lambetismo indecoroso, do que viver
decentemente para com o semelhante, que é o que Deus quer que
façamos. A turba humana não sabe ainda compreender e amar; por isso
mesmo, teme e adula, por meio de formalismos pagãos, idólatras, em
si mesmos repugnantes. A capacidade de hipocrisia é tal, a tal ponto
sobe a deselegância em conduta moral-mental-religiosa, que, mesmo
depois de reconhecidas as fraudes teologais, os falsos adornos, as
verdades postiças, as mentirosas disposições convencionais, ainda
continuam a ceder, por via dos rótulos, dos títulos, dos
preconceitos, das famigeradas obrigações sociais, protocolares e
ditas civilizadas. O homem, de fato, está sepultado bem no fundo do
homem fictício, do homem formal, do homem fantoche, do homem
convencional. E é por isso que a morte envia, todos os dias, para os
rincões de treva, pranto e ranger de dentes, dezenas de milhares de
engalanados do mundo, de gente de tripa forra e herdeira de valiosos
símbolos do mundo. Se o diabo existisse, seu melhor negócio seria
com os titulados das religiões.
Como a morte poderia rir da vida, não
fosse ela da vida prolongamento, não tivesse de ser veículo de
transições lentas, judiciosas e belas! E, se fosse dado a mortais
olhos, no plano da carne, ver em como se transmudam em trevosos
certos luminares do mundo? E se o espírito encarnado, que focaliza
nos empíreos celestiais a certos seus devotos, fosse dado vê-los
nos barraçais de toda ordem? Em que sorte de prostração cairiam
milhões de seres, simples e humildes, em vendo a seus heróis
apeados de seus pedestais insólitos? Como se portaria a Humanidade,
que compra tudo quanto carece de espiritual, quando visse os seus
funcionários pedindo, mãos postas, lamacentos, suarentos, tétricos,
um pouco de paz, uma medida de redenção, uma oportunidade de
ressarcimento? Como se portariam os filhos do povo, em vendo que aos
simples pais, mães, filhos, irmãos, gente decente, foi entregue o
bastião da espiritualidade, a ordem de autoridade, sendo que aos
donos de credos, proprietários do pensar alheio, outro rumo não foi
indicado, sem ser o das reencarnações dolorosas, o das provas por
vezes horripilantes?
Sim, amigos, imaginai nisso tudo,
pois a Justiça Divina vos mostra tudo e de pronto. Quem é esse
homem que vedes, sempre, estirando a mão à cata de uma esmola,
encostado à porta de um templo qualquer? Não teria estado ontem, lá
dentro, a vender sacramentos, ou à custa destes a fabricar
ignorantes e simplórios, para mais logo os explorar? E aquele cego,
aquele coxo, aquele leproso, aquele surdo-mudo, aquele paralítico,
etc.? Quem está por fora vedes, mas quem está no cerne não podeis
ver. Contudo, poderíeis imputar fraude, dolo, precariedade, à
Soberana e Interna Justiça? Pois não vos confundais, amigos, com os
rótulos do mundo. O mundo veste a fantasia de um modo assaz incerto.
Daqui vos falamos, porque ordens superiores assim determinaram, em
virtude do ciclo que se vence. Nova era despontará, lentíssima, nos
horizontes da vida planetária, conclamando ao bem, ao fraternismo
sem rótulos, sem presunção, sem ostentação, sem exteriorismos
falsos, que primeiro ludibriam aos sentidos e depois chafurdam os
espíritos nos antros abismais. De futuro, sem dúvida,
respeitar-se-á o ser pelas suas virtudes e pelo seu saber de fato.
Quem mais tem mais deve dar, em obras de Humanidade, não em
forjaduras idólatras, não em farândolas simbólicas,
mistificadoras e infernais.
Revendo
o meu longo viver sobre a Terra, em todos os tempos, eras,
continentes, raças, povos, credos e pátrias, posso dizer que vi, em
linhas gerais, o viver, o deslizar da Humanidade por sobre a Terra.
E, se dolorosa é a história humana em geral, desgastando as arestas
do interior, em luta contínua contra as quinas do ambiente exterior,
também proveitosa foi a dura jornada de milênios. Atravessando o
homem coletivo, a Humanidade, os vulcões do mundo exterior, suas
guerras e cataclismos, também, conjuntamente, foi conseguido
burilar, quebrar cantos, amolgar ângulos de sua estrutura ainda
feroz, animal e truculenta. Houve permuta em todos os sentidos, sem
dúvida, entre a luta do homem contra o meio e do meio contra o
homem, obrigando-o à melhora, ao progresso em geral. E é para isso
mesmo que tudo existe em torno do homem, da monera ao macrocosmo:
para o tanger, inculcar-lhe o espírito de luta, por idealismo,
ciência, arte, necessidades em geral. Nada deixará jamais de
instruir ao homem, desde que ele queira pensar nas origens, no plano
de ação e nos destinos de todas as coisas. Uma simples formiga é
um monumento de estrutura mecânica; sondar numa monera o seu porquê,
as suas bases físico-químico-mecânicas vale por um curso técnico
que não podemos ainda completar, em virtude de ir esbarrar na
transcendência de tudo, na Causa Originária. O simples duplo-etéreo
de um homem, encerra desafio a todas as argúcias científicas,
apesar dos imensos informes do Consolador, porque em tons e matizes
qualquer ordem de fenômeno se estende ao infinito.
E o amor nunca fabricou desgraças, o
amor de ordem superior, é claro. Mas vi levantarem-se, dos
proscênios religiosistas, não cânticos de glórias a atrair
bênçãos, não cortejos de nobres atos a forçar o florescimento de
dons de alma, mas sim vi, pasmo, chocado, assombrado, que eles
subiam, como fumo de breu, colunas de dor, de ódio, de perseguições,
de vinditas cruéis, que subindo um pouco, depois desciam, saturando
tudo com a pestilência de suas ingênitas virulências. É que
falando de Deus, na Verdade, no Amor, os credos oficializados e
organizados em bases político-econômicas, nada mais têm feito que
trair e trair! Atiram Deus contra Deus, a Verdade contra a Verdade, o
Amor contra o Amor! Nunca! Isso jamais se daria, porque as coisas
puras não são atingíveis pelas baixezas do homem ignaro. Estes é
que, presumidos e maldosos, se atiram nos abismos, nos grilhões das
reencarnações dolorosas. É triste arrastar a coletividade para as
concepções indignas do Amor e da Justiça de Deus. Moisés,
descendo do Monte Sinai, com ordem de não matar, havendo morto quase
vinte e quatro mil, não traiu a Lei, nem em sua forma, nem e menos
ainda em seu espírito — traiu-se a si mesmo. O Cristo, dando-se à
morte ignominiosa, ressurgiu no mundo dos ultralibertos, coroando com
os galardões de mais um imperecível triunfo e poder de mando. Eis
que existem, amigos, várias ordens de vitória. Algumas vitórias
valem por fragorosas derrotas, por descidas a abismos consciencionais
e exteriores.
ÍNICIO - CAPA
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